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Encontrei uma entrada num velho diário em que se lia: “Só a música me compreende”. É um disparate pueril, dirá com paternalismo quem nasceu velho. Felizmente, apesar de muitos adultos não se convencerem disto, o canhão prepotente da condescendência não faz mossa na muralha de verdades absolutas que rodeia um adolescente. O tempo encarregar-se-á de a deitar abaixo (e perder as certezas até nem é das piores coisinhas do crescimento). É verdade, só a música me compreendia — pelo menos naquele preciso momento em que escrevi esse disparate.

No tempo dos diários, as canções ecoavam os nossos segredos. Pareciam mesmo à nossa medida porque ainda não tínhamos percebido que a música popular é, mais bainha menos bainha, de tamanho único. Oferecermos uma mixtape ao objecto do nosso amor era revelarmos um pouco mais da nossa história íntima. Hoje, porque a música está por todo o lado em quantidades não homologadas, resta-nos a modesta curadoria de cada indivíduo: não necessariamente conhecermos a história de uma pessoa através da música (já leio ao longe a indignação: “o que é que isso me interessa?”), mas talvez conhecermos a música através da sua história. Em comparação com tudo o que está disponível à bruta via internet, sempre se leva um bónus — e customizado. Segue-se, assim, uma playlist íntima para ouvirem Bowie através dos meus ouvidos. Se não servir para mais nada, façam como as T-shirts grátis: usem-na para dormir.

“Space Oddity” (Space Oddity, 1969)

Era miúda e não sabia inglês suficiente quando ouvi esta canção pela primeira vez, nos anos 80. Explicaram-me que o Major Tom estava no espaço a ver a Terra ao longe e que, às tantas, decide não voltar. As palavras “tell my wife I love her very much, she knows” (“digam à minha mulher que a amo muito, ela sabe”) trouxeram-me lágrimas precoces aos olhos. Deve ter começado aí a minha escoliose, no momento em que percebi que carregava o peso do mundo nos ombros.

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https://www.youtube.com/watch?v=cYMCLz5PQVw

Pouco tempo mais tarde, percebi a relação de “Space Oddity”, de 1969, com “Ashes to Ashes”, de 1980: nesta, Bowie repreende a personagem do Major Tom, um “junkie”. Demasiado jovem para me aperceber da correlação entre a vida da personagem e a sua própria (Major Tom seria o seu passado cocainómano), lembro-me de achar que Bowie estava só “a ser parvo” — uma análise perfeitamente legítima à altura.

“Life on Mars” (Hunky Dory, 1971)

É inesgotavelmente emocionante e arrebatada em qualquer contexto que a ponham a tocar, uma daquelas que se a minha vida dependesse de ouvir uma canção em loop para sempre, OK, podia ser esta. Geralmente, tamanha eficácia tem na sua origem uma invejável falta de esforço — à excepção, claro, de “O Ritmo do Amor (Kuduro)”, de Emanuel, que consta ter demorado 12 anos a ser composta.

https://www.youtube.com/watch?v=v–IqqusnNQ

Bowie descreveu no Daily Mail, em 2008: “Esta canção foi tão fácil, era tão fácil ser jovem. Apanhei o autocarro para ir comprar uns sapatos e o riff não me saía da cabeça (…) Ao fim da tarde tinha a canção acabada”.

“Rock’n’Roll Suicide” (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, 1972)

A discografia de David Bowie chegou-me muito cedo por via do meu irmão e, às tantas, já adulta, apercebi-me de que tinha — e ainda tenho — poucos álbuns, uma quantidade em nada proporcional à admiração que sempre lhe tive. Comprei Ziggy Stardust numa loja de usados por 12 euros e descobri “Rock’n’Roll Suicide”. Ganhou-me ao primeiro verso: “Time takes a cigarette, puts it in your mouth”.

“Modern Love” (Let’s Dance, 1983)

Estava aqui guardada no fundo da nuca, numa gaveta de coisas queridas, e foi preciso o filme “Frances Ha”, de Noah Baumbach, ir lá resgatá-la muitos anos mais tarde. “Modern Love” está incluída em Let’s Dance, o álbum que atirou David Bowie para o mainstream e que deu início ao seu período mais olvidável (há quem lhe chame a “fase Phil Collins”, mas eu gosto de Phil Collins).

https://www.youtube.com/watch?v=1hDbpF4Mvkw

“Modern Love” é uma canção incrível mas, se a minha vida dependesse de ouvir uma canção em loop para sempre, o single “Let’s Dance” não seria certamente a minha escolha. Culpem o Cais do Sodré.

“As The World Falls Down” (Labyrinth OST, 1986)

Nessa chamada “fase Phil Collins” de David Bowie, está incluída a banda sonora mal amada de um dos filmes da minha vida: “Labirinto”, realizado pelo criador dos Marretas Jim Henson, escrito pelo Monty Python Terry Jones e com David Bowie como mau da fita. Tem tudo para ser perfeito — e é, tirando a peruca de Bowie.

https://www.youtube.com/watch?v=CvLnPO9t4Wg

“As The World Falls Down” é uma espécie de sonho húmido para menores de 12: a protagonista Sarah (Jennifer Connelly adolescente) come um pêssego envenenado e, numa espécie de delírio em que se vê num baile vestida como uma princesa, quase cede aos encantos do temível Rei Goblin (Bowie). É uma balada incrivelmente datada, apenas intemporal neste coração que muito bateu por esse irresistível vilão.

“Absolute Beginners” (Absolute Beginners OST, 1986)

Mais uma canção para um filme musical, homónimo, realizado pelo rei dos telediscos Julien Temple e também com Bowie no elenco. Um filme, há que dizê-lo, de qualidade bastante questionável. A banda sonora (Bowie, Sade, Style Council, entre outros), no entanto, fez-me vê-lo repetidamente ao ponto de o apreciar.

https://www.youtube.com/watch?v=r8NZa9wYZ_U

“Absolute Beginners”, a canção, é uma espécie de sing-a-long obrigatório para amantes em início de vida mas, como cada amor é um recomeço, o melhor mesmo é ouvi-la para sempre. Porque só sabemos que não sabemos nada mas, enquanto nos amarmos, vai correr tudo bem.

“Strangers When We Meet” (The Buddah of Suburbia, 1993 e Outside, 1995)

Começou por fazer parte da banda sonora da mini-série britânica “The Buddah of Suburbia” e foi depois repescada para o álbum Outside, possivelmente pelo seu potencial de single — é épica e apaixonada, na tradição de “Modern Love” e “Absolute Beginners”, canções que gosto de definir como perfeitas para fugir daqui para fora. No entanto, acabou por passar bastante despercebida, até porque Outside tem um registo muito mais obscuro do que “Strangers When We Meet”, enquanto single, deixaria transparecer.

“The Heart’s Filthy Lesson” (Outside, 1995)

Em meados dos anos 90, andava eu toda adolescente, entretida com o grunge e deprimida com a morte de Kurt Cobain, e David Bowie tinha ficado guardado nas memórias de uma infância ainda demasiado próxima que eu tentava, com tanto repúdio como saudade, afastar o mais possível de mim. Quando Outside saiu, pensei: “olha o senhor, como ainda se aguenta aqui neste mundo de rock e vísceras que eu tanto aprecio”. Vê-lo fazer parelha com um dos meus ídolos da altura, Trent Reznor (que assina várias remisturas desta música), legitimava o seu regresso à minha vida. É que isto da intemporalidade de um génio, às vezes só se percebe em perspectiva. “The Heart’s Filthy Lesson” é isso mesmo, suja. Era tudo o que eu queria.

“Little Wonder” (Earthling, 1997)

Há autores que caem na tentação de se citar a si mesmos. Vou fazê-lo e nem vos vou dar tempo para pensar onde é que já ouviram isto: “Isto da intemporalidade de um génio, às vezes só se percebe em perspectiva”. É que houve vários Bowies na minha vida, à medida de cada fase do meu crescimento, mas o que é realmente incrível é olhar para trás e perceber que foi sempre ele e sempre diferente.

O seu papel ao longo da minha vida não dependia apenas da minha relação com a música, mas da forma brilhante como ele se ia actualizando. Nos meus anos 90, o ar dos tempos era uma ventania e o bom velho Bowie também lá andava a soprar. Tanto que, no fim dessa década, o breakbeat era a grande cena e “Little Wonder”, single do álbum Earthling, mostrava que Bowie também ia apanhar esse comboio – sem nunca deixar de ser Bowie, um escritor de canções do caraças.

“Where Are We Now” (The Next Day, 2013)

Incluí esta canção nesta playlist porque foi a primeira vez que senti Bowie a sentir-se velho. Não no sentido de gasto ou cansado, mas particularmente melancólico, chafurdando mais ostensivamente nas memórias. The Next Day foi lançado de surpresa, depois de dez anos sem novidades de Bowie. Fiquei comovida quando ouvi “Where Are We Now” pela primeira vez porque, apesar do elogio da adolescência nestas entrelinhas, nasci com a alma de uma idosa moribunda. E dez anos, ao contrário do que dizia o Paulo de Carvalho, é muito tempo.

“I Can’t Give Everything Away” (Blackstar, 2016)

Notícias recentes insinuam que talvez Bowie não soubesse que estava doente durante a composição de Blackstar, apesar de toda a gente o ter interpretado como uma elegia — ou melhor, depois de toda a gente o ter reinterpretado como uma elegia depois da sua morte, à laia de prognóstico depois do jogo. Na verdade, interessa muito pouco se Bowie compôs este disco antes ou depois de saber o resultado dos exames, mas não me parece especulativo supor que — tal como muitas pessoas saudáveis e neuróticas — ele estivesse a sentir o cão da morte a bafejar no seu pescoço quando o fez. “I Can’t Give Everything Away” é a última faixa de Blackstar e soaria a despedida mesmo que Bowie vivesse mais cem anos.

Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3