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“Como pôde um livro unanimemente considerado patético, politicamente confuso, de leitura aborrecida e, em suma, ridículo, tornar-se tão nefastamente eficaz? Qual o poder de fascinação que ainda exerce? A quem se dirige e porquê?” – são questões pertinentes postas na contracapa de O “Mein Kampf” de Adolf Hitler: Sobre uma poética do nacional-socialismo (Adolf Hitlers “Mein Kampf”: Zur Poetik des Nationalsozialismus), de Albrecht Koschorke, uma edição da Cavalo de Ferro com tradução de Paulo Osório de Castro.

Adolf Hitlers Mein Kampf Zur Poetik des Nationalsozialismus

A entrada no domínio público, a 1 de janeiro de 2016, dos direitos de autor de Mein Kampf, suscitou reedições e debates, um pouco por todo o lado (ver Mein Kampf: Quem tem medo deste best-seller?), mas, naturalmente, teve maior repercussão na Alemanha, onde a publicação da obra estava interdita e onde a cessação dos direitos coincidiu com a publicação de uma edição crítica da obra, profusamente anotada, preparada pelo Instituto de História Contemporânea (Institut für Zeitgeschichte, IfZ).

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A edição crítica de Mein Kampf do Institut für Zeitgeschichte

Foi neste contexto que Albrecht Koschorke, professor de Literatura Moderna Alemã e de Estudos Literários na Universidade de Constanz, se propôs “proceder à análise do próprio texto e dos sinais que este emite”, partindo do princípio de que Mein Kampf “não pode reduzir-se à dimensão de uma mensagem ideológica dirigida, por igual, a todos os leitores”. Curiosamente, algumas das reflexões de Koschorke ajudam a iluminar as palavras e comportamento de um político de hoje que, não sendo, nem na ideologia nem no percurso de vida, afim de Hitler, tem com ele pontos de contacto no discurso e na forma como entende a política: Donald Trump.

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Mein Kampf pela Eher Verlag

Uma das edições de Mein Kampf pela Eher Verlag, a editora oficial do Partido Nazi

Quem quer políticos inteligentes?

Aos que apontam as numerosas debilidades de Mein Kampf, nomeadamente as contradições e incongruências e a lógica deficiente, Koschorke contrapõe as “particulares condições de recepção desse meio que é o livro: só poucos […] o lêem em toda a sua extensão, outros conhecem apenas excertos ou citações postas a circular, de modo que se formam vários círculos concêntricos de iniciação e de sacerdócio político, cujos representantes, por sua vez, se distinguem perante a grande maioria dos não leitores e, em relação aos quais assumem um papel de mentores. […] Estas circunstâncias ajudam a explicar por que razão o carácter muitas vezes confuso de semelhantes livros de culto em nada pode diminuir a sua autoridade”.

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Koschorke tem toda a razão: um livro não tem de estar solidamente estruturado e impecavelmente argumentado e possuir “qualidade literária” para encontrar um público alargado e produzir efeito. Na verdade, os livros que costumam ocupar os tops de vendas não exibem essas qualidades. De nada serve à crítica literária verberar a inépcia da prosa e o primarismo das ideias, pois quem os compra não tem o hábito de ler crítica literária, nem sequer concebe o que tal possa ser.

Mas os livros que dominam os tops de vendas são, em geral, livros que se destinam a ser lidos na íntegra, pelo que estão, ao menos, obrigados a possuir tensão dramática (ainda que postiça) e coerência no enredo (ainda que estereotipado) e nas personagens (ainda que bidimensionais). Um livro-panfleto como Mein Kampf não precisa de cumprir o que é exigido ao mais reles thriller de aeroporto: pode contradizer-se, pode repetir-se, pode ter trechos insuportavelmente maçudos – pouco importa, já que poucos lerão o livro da primeira à última página e menos ainda serão os que o farão com espírito analítico.

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Tal como um livro não precisa de ser inteligente para chegar a muitas pessoas, um político não tem necessariamente de ser inteligente para triunfar. Nem sequer precisa de ser mais inteligente do que os seus rivais, ou, sendo-o, não precisa de o evidenciar, até porque os eleitores tendem a desconfiar de políticos que evidenciam superiores dotes intelectuais; sentem-se melindrados quando a exibição de inteligência alheia põe em relevo a sua condição de ignaros e preferem políticos que vêem como semelhantes a eles próprios, ou como uma versão “aditivada” deles próprios (no caso de Trump, mais abastada, com uma esposa mais vistosa e com um catálogo de proezas sexuais mais extenso e colorido).

Na verdade, para que um político triunfe, basta-lhe ser mais inteligente do que os eleitores, desde que não o alardeie excessivamente – não será mal visto que se gabe de ser suficientemente esperto para ter sucesso nos negócios ou ludibriar o fisco, mas o eleitor médio não lhe perdoará que cite Wittgenstein ou confesse que encontra refrigério para a lufa-lufa diária na audição dos madrigais de Monteverdi.

Hitler e o busto de um filósofo de que o nazismo se apropriou: Friedrich Nietzsche

O fanatismo não é cego

As invectivas mais ferozes e descabeladas de Mein Kampf ou as enormidades proferidas amiúde por Donald Trump parecem provir de alguém cujo fanatismo e estreiteza de vistas fazem com que não tenha em consideração o impacto negativo que suscitará junto das pessoas que não pensam como ele. Entende Koschorke que esta perspectiva está equivocada: os “membros mais inexperientes e menos importantes dos movimentos fanatizados” poderão ser cegos, mas “na maneira como se exprimem [os mentores desses movimentos] está incluído, com suspeitosa meticulosidade, o cálculo da reacção dos outros: a presunção, a indignação, o horror”. A declaração “politicamente incorrecta”, a frase ultrajante e a teoria conspirativa descabelada não resultam da pura estupidez de quem as profere: a mundivisão paranóica a resvalar para o fantástico é, segundo Koschorke, o mais intrínseco impulso do fanatismo.

O discurso fanático costuma circunscrever-se a uma nesga de “verdades seguras, para lá da qual começa logo o território hostil dos pontos de vista diferentes”. E porque vê o diálogo como uma ameaça à sua limitada mundivisão, o fanático rejeita-o – ele não está interessado em dialogar com quem não pensa como ele.

Cartaz nazi: “O judeu: instigador e sustentáculo de guerras”

Cartaz nazi: “O judeu: instigador e sustentáculo de guerras”

O fanatismo não tem de acreditar

Por outro lado, “a fanatização não tem necessariamente algo que ver com a genuína convicção”. Hitler limitou-se a tomar emprestadas “opções existentes no mercado de opinião”, mas a que faltava um porta-voz, ou, pelo menos, um porta-voz dotado de convicção e carisma suficientes. E como, “habitualmente, os sectores médios da opinião estão mais densamente ocupados do que os sectores marginais”, é mais fácil conquistar as atenções dos media e dos eleitores com proclamações e promessas radicais – pouco importa que sejam inexequíveis, pois quem as profere não acredita necessariamente nelas e o político radical tenderá a aproximar-se, “passando algum tempo, por meio de concessões e atenuando a sua mensagem, do centro do campo das opiniões, conseguindo assim viabilizar alianças políticas”.

Capa da revista satírica alemã Lustige Blätter, 1943: O polvo judeu manipula os Aliados

Capa da revista satírica alemã Lustige Blätter, 1943: o polvo judeu manipula os Aliados

Considera Koschorke que no discurso fanático, “a maior promessa […] é a da própria atribuição do poder” e é difícil não estabelecer um paralelo entre a promessa de Hitler de devolver à Alemanha a dignidade, a grandeza e os territórios que lhe tinham sido roubados pelo humilhante Tratado de Versailles e o “make America great again” de Trump (na verdade reciclado da campanha de Reagan em 1980).

Acontece que “a linguagem da atribuição do poder tende para o excesso. O segredo do seu êxito consiste grandemente em se embriagar consigo próprio […] Aí reside o elemento ‘dionisíaco’ dos movimentos fanáticos. Este efeito auto-catalítico é uma das razões para que o porta-voz de um tal movimento não tenha forçosamente de acreditar naquilo que diz; tão-pouco o seu público. Necessário é, somente, que ambas as partes se entendam […] na concordância ostensiva quanto a afirmações extremas, quanto a embriagarem-se consigo próprios e a perturbarem de maneira triunfante quem está de fora”.

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Capa da revista satírica alemã Lustige Blätter, 1943: Os Aliados devoram-se entre si e o Judeu acaba devorando todos

E se as meias-verdades são particularmente adequadas a este tipo de discurso, “se houver um pré-acordo estável entre o porta-voz e os seus partidários, também as puras mentiras fazem serviço”. Por efeito de repetição, as mentiras convertem-se facilmente em convicções, até porque “existe uma universal propensão humana para acabar por dar crédito às próprias mentiras, apesar de se saber que são mentiras” (um estudo de Neil Garrett et al. publicado em outubro passado na revista Nature Neuroscience revela as bases neurofisiológicas da progressiva adaptação do cérebro à desonestidade, fazendo da mentira uma segunda natureza).

É difícil não pensar em Trump e na sua ténue e conflituosa relação com a verdade, mas de pouco serve que vários media se empenhem em denunciá-las sistematicamente (o The Huffington Post apurou uma média de 71 mentiras por hora, ou de uma mentira a cada 169 palavras, numa intervenção pública de Trump em Março passado), pois aos seus apoiantes pouco importa a verdade do seu discurso.

Capa da revista satírica alemã Lustige Blätter, 1943: “Informações dos EUA”: a estátua invertida atrás do Tio Sam representa a Verdade

Capa da revista satírica alemã Lustige Blätter, 1943: “Informações dos EUA”: a estátua invertida atrás do Tio Sam representa a Verdade

Mein Kampf mudou o curso da história?

Koschorke é convincente na demonstração de que um livro pode ser “patético, politicamente confuso, de leitura aborrecida e, em suma, ridículo” e, ainda assim, manter a sua eficácia. Mas terá Mein Kampf sido mesmo eficaz?

Os números de vendas sugerem que não: em 1927, dois anos após a publicação, o I volume tinha vendido 5.000 exemplares, o II, 1200. O próprio autor parecia duvidar da eficácia de Mein Kampf na disseminação do seu ideário, impressão para que terá contribuído o desolador resultado obtido pelo NSDAP nas eleições de 1928.

Hitler dispôs-se, portanto, a escrever um novo livro que desenvolvesse e explanasse em detalhe as ideias que expusera incompleta e sumariamente em Mein Kampf. Este terceiro livro (hoje em dia designado usualmente por Zweites Buch, o segundo livro) deveria, nas palavras de Timothy Ryback, em A biblioteca privada de Hitler, “transformar Mein Kampf numa trilogia coerente: o volume I centrado nele próprio, o volume II dedicado ao Partido Nazi e à Alemanha e o volume III fazendo, então, essa contextualização do papel da Alemanha no mundo”.

Hitler concluiu a escrita do novo livro em julho de 1928, mas este nunca seria revisto nem editado, não passando do estádio de dactiloscrito. Foi encontrado em 1945 pelo Exército americano mas foi esquecido, sendo redescoberto apenas em 1958 por um historiador, que só conseguiu encontrar-lhe editora em 1961 – continua hoje a ser praticamente desconhecido, o que é paradoxal, face à fama planetária do antecessor.

O que terá levado a que a sequela de Mein Kampf não fosse publicada? Ryback sugere duas explicações:

1) As fracas vendas não tentariam o editor Max Amann, da Eher Verlag, que editara Mein Kampf, a correr novo risco;

Max Amann

Max Amann (1891-1957), em uniforme de SS-Grüppenführer, um posto honorífico, já que o seu campo de batalha era de papel e tinta. A partir de 1933, assumiu o controlo da imprensa e da edição na Alemanha

2) Hitler estava consciente das suas insuficiências como escritor – viria mais tarde a confidenciar a Hans Frank, o seu advogado e figura de relevo do NSDAP, que a sua vocação não era a escrita: “Que belo italiano fala e escreve Mussolini. Eu não o consigo fazer em alemão. Simplesmente não consigo manter a coerência do raciocínio quando escrevo”.

Mussolini, no início da sua carreira

Mussolini, no início da sua carreira

Comparados com os escritos de Mussolini, Mein Kampf “parecia-lhe um mero exercício de fantasia atrás das grades, pouco mais do que uma série de artigos escritos para o Völkischer Beobachter [o jornal oficial do NSDAP]”, o que levava Hitler a concluir: “não sou um escritor”. Após ter conquistado o poder, diria ao mesmo Frank: “se em 1924 imaginasse que chegaria a chanceler do Reich, nunca teria escrito [Mein Kampf]”.

O próprio Mein Kampf deixa clara a preferência de Hitler pelo discurso oral, quando proclama que “é preciso que os literatelhos e peralvilhos de hoje saibam que as maiores revoluções deste mundo nunca foram dirigidas por escrevinhadores!”

Cartoon na revista satírica Punch, 1932: Hitler: “Vós que sabeis tudo sobre ditadores, excelência, dizei-me, não deveria eu escrever uma peça? Talvez possais sugerir-me um tema...” Mussolini: “Com certeza, vejamos: acabei de escrever sobre Napoleão e Shakespeare tratou de Júlio César. Não me ocorre nenhum outro colosso adequado – a não ser, quiçá...” Hitler: “Permitis-me? Oh, esplêndido!”

Cartoon na revista satírica Punch, 1932: Hitler: “Vós que sabeis tudo sobre ditadores, excelência, dizei-me, não deveria eu escrever uma peça? Talvez possais sugerir-me um tema…” Mussolini: “Com certeza, vejamos: acabei de escrever sobre Napoleão e Shakespeare tratou de Júlio César. Não me ocorre nenhum outro colosso adequado – a não ser, quiçá…” Hitler: “Permitis-me? Oh, esplêndido!”

Pouco lido, mesmo entre os fiéis

A dada altura, Koschorke defende que Hitler escreveu Mein Kampf menos para tentar seduzir as massas para a sua causa – uma vez que acreditava que as massas não tinham qualquer apetência pela leitura – do que para doutrinar os seus partidários: “para o círculo mais restrito de adeptos, Mein Kampf tinha o carácter de um manual”.

Ora, Mein Kampf está nos antípodas do que deve ser um manual – o livro contém considerações sobre propaganda e manipulação de massas, mas estão perdidas no meio de 600 páginas de excipiente. Se Hitler pretendesse transmitir aos dirigentes do NDSAP directrizes de actuação nesse domínio teria obtido resultados melhores com uma circular interna de duas ou três páginas do que ocultando e dispersando essas orientações num livro verborreico, repetitivo e desorganizado.

Por outro lado, a ideia de que Mein Kampf funcionou como manual para os apaniguados de Hitler é desmentida por este relato de Otto Strasser, um dirigente nazi que viria depois a divergir de Hitler: no congresso do NSDAP, em Nuremberga, em 1927, Strasser citou “algumas frases de Mein Kampf, o que causou alguma sensação. À noite, ao jantar com vários colegas […], foi-me perguntado se eu tinha mesmo lido o livro, com o qual nenhum dos presentes parecia estar familiarizado. Admiti ter feito algumas citações sem me ter dado ao trabalho de perceber o seu contexto. Isto suscitou o divertimento geral e acordou-se que a primeira pessoa que se juntasse a nós que tivesse lido Mein Kampf pagaria a conta do jantar. A resposta de Gregor [irmão de Otto] foi um rotundo ‘não’, Goebbels abanou a cabeça, envergonhado, Goering desatou a rir ruidosamente e o Conde Reventlow desculpou-se com a falta de tempo. Ninguém lera Mein Kampf, de forma que cada um teve de pagar a sua conta” (em Hitler und Ich, 1948).

Se nem o fidelíssimo Joseph Goebbels leu Mein Kampf, quem o terá feito?

Se nem o fidelíssimo Joseph Goebbels leu Mein Kampf, quem o terá feito?

Foi a espectacular ascensão do NSADP em 1930 que incitou a Eher Verlag a reeditar Mein Kampf num único volume, que só nesse ano vendeu 54.000 exemplares. O sucesso do livro aumentou ainda mais quando Hitler ascendeu a chanceler e assumiu o controlo do Estado alemão. No final da guerra tinham sido vendidos ou oferecidos (a expensas do Estado) 10 milhões de exemplares.

Em Nightrain to Munich (1940), de Carol Reed, um thriller que tem por cenário a Alemanha na véspera da eclosão da II Guerra Mundial, Charters (Basil Radford) busca no quiosque da estação de caminho-de-ferro algo para ler na viagem e depara-se com uma oferta muito limitada

Em Nightrain to Munich (1940), de Carol Reed, um thriller que tem por cenário a Alemanha na véspera da eclosão da II Guerra Mundial, Charters (Basil Radford) busca no quiosque da estação de caminho-de-ferro algo para ler na viagem e depara-se com uma oferta muito limitada

Mas a conclusão que pode daqui extrair-se não é que Hitler conquistou o poder por Mein Kampf ser um best-seller, mas sim que Mein Kampf se tornou num best-seller por Hitler ter conquistado poder.

O livro de Koschorke abre uma perspectiva menos usual sobre Mein Kampf, o que é de louvar, mas tende a sobrevalorizar o real efeito do livro no seu tempo. Este já vai longe e os leitores da década de 20 e 30 estão todos mortos e mesmo que não estivessem, iriam provavelmente mentir (as pessoas mentem imenso sobre os livros que lêem e não lêem, e mais razões teriam para mentir tratando-se de um “livro maldito”), mas seria interessante tentar apurar qual a recepção efectiva de Mein Kampf dentro e fora do NSDAP e entre as pessoas comuns e as elites.

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A ideia de ler Mein Kampf era hilariante para líderes nazis como Hermann Goering

Para que serve afinal a filosofia?

Por coincidência, veio recentemente a lume informação sobre a opinião de um dos maiores intelectuais alemães do século XX sobre Mein Kampf. Há muito que se sabia que o filósofo Martin Heidegger (1889-1976) nutrira inclinações pró-nazis, mas embora estando comprovado que aderiu ao NSDAP a 1 de maio de 1933, poucos meses depois de Hitler ter sido nomeado chanceler (e dez dias antes de Heidegger ser nomeado reitor da Universidade de Freiburg), e que continuou a fazer parte do NSDAP até ao fim, em 1945, o grau de comprometimento de Heidegger com o nazismo e o anti-semitismo e a medida em que a sua filosofia reflecte a sua crença nos ideais nazistas têm sido motivo de aceso debate nos meios académicos, com os defensores de Heidegger a sugerir que a sua adesão ao nazismo foi efémera e superficial.

Martin Heidegger e a família, na sua casa de campo, década de 1930

Martin Heidegger e a família, na sua casa de campo, década de 1930

Porém, em outubro passado, o jornal alemão Die Zeit publicou excertos da correspondência entre Martin Heidegger e o irmão, Fritz, que confirmam a admiração do filósofo por Hitler e a sua sincera adesão ao ideário nazi. Em 1931, com o propósito de converter ao nazismo o irmão, bancário de profissão, enviou-lhe um exemplar de Mein Kampf, acompanhado de uma carta em que louvava o “instinto político excepcional e infalível” de Hitler. Outras cartas revelam o entusiasmo de Heidegger com a ascensão dos nazis, a crença em conspirações judaicas contra a Alemanha envolvendo o “Grande Capital” e o receio de que o “espírito germânico” sucumbisse face à dupla ameaça do “bolchevismo” e do “americanismo”.

Haverá quem pasme por um pensador sofisticado ter sido seduzido por uma ideologia tão vil e grosseira como o nacional-socialismo e por uma criatura de estatura intelectual e ética tão rasteira como Hitler. Mas é ainda mais surpreendente que Heidegger recomende uma rematada pepineira como Mein Kampf ao irmão e creia que o livro poderá ter o condão de convertê-lo ao nazismo. Há três explicações possíveis para a actuação de Heidegger:

1) Ou, como milhões de alemães, Heidegger não leu o livro e enviou-o ao irmão fiando-se na opinião corrente de que seria um poderoso e persuasivo tratado político;

2) Ou Heidegger leu Mein Kampf e percebeu que o livro era indigente mas, não tendo as capacidades intelectuais do irmão em grande conta, acreditou que estariam bem um para o outro;

3) Ou Heidegger leu Mein Kampf e achou-o genuinamente válido, quer no conteúdo quer na forma.

Imagem de Der Fuehrer’s face, uma curta-metragem de animação da Disney, lançada em 1943. Foi o único filme com o Pato Donald que ganhou um Óscar

Imagem de Der Fuehrer’s face, uma curta-metragem de animação da Disney, lançada em 1943. Foi o único filme com o Pato Donald que ganhou um Óscar

Nenhuma delas é abonatória para Heidegger, mas a terceira é aterradora, pois significa que um espírito capaz dos mais subtis e complexos raciocínios e munido de uma sólida bagagem cultural é capaz de confundir um calhau com um diamante e persisitir nesse erro durante anos, o que constitui uma séria advertência para todos os que tendem a deslumbrar-se com a sua própria inteligência. Esta, por aguda que seja, só vale para alguns domínios da vida – ninguém é esperto em tudo – e, ainda assim, apenas intermitentemente. Erasmo estava cheio de razão quando observou que é possível ser-se, ao mesmo tempo, um génio e um perfeito imbecil.