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AFP/Getty Images

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Uma biblioteca e um jardim depois do último combate

O Observador publica o primeiro capítulo do livro "O Último Combate", do jornalista Filipe Santos Costa, que conta como foi a campanha eleitoral de Mário Soares que acabou na sua maior derrota.

Aos 81 anos, Mário Soares regressou. Mais que o desejo de voltar ao Palácio de Belém, queria salvar o país de uma Presidência de Cavaco Silva. Foi para a estrada em 2005. Fez uma campanha improvável. E, em janeiro de 2006, perdeu como jamais tinha perdido. Para Cavaco. E para Manuel Alegre. O jornalista Filipe Santos Costa, que cobriu a aventura eleitoral do fundador do PS, escreveu este livro há 11 anos — hoje impossível de encontrar nas livrarias — e agora reeditado com novo título. “A Última Campanha” deu lugar a “O Último Combate”.

Em 2007, Mário Soares explicou numa entrevista a sua visão sobre a morte: “Estou convencido de que depois de morrer acabou tudo. Não há mais nada. Nem recompensas nem castigos”. A frase é o mote para o prefácio de Filipe Santos Costa ao livro cujo primeiro capítulo é publicado pelo Observador: “Mário Soares não tinha ‘essa sorte’. Não acreditava em Deus, nem na vida depois da morte. Não tinha religião, ‘não sei se feliz, se infelizmente’. Nada. Confessou‑o durante uma ação de campanha eleitoral. (…) E aí falou do conforto que, supunha, sentirá quem acredita em Deus e na imortalidade da alma. Era o caso da sua mulher, Maria de Jesus, mas não o seu.”

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O livro de Filipe Santos Costa foi reeditado esta semana pela Matéria-Prima com um novo título

Retrato de um otimista no momento da derrota

“Era como se a gravidade tivesse mais força. Na tarde de 21 de janeiro de 2006 Mário Soares parecia mais pesado, os ombros mais descaídos, as olheiras mais papudas, as bochechas mais flácidas, a moral mais em baixo. Parecia menos Soares. Estava cansado e sabia que ia perder. Não se via réstia da energia com que tinha levado uma campanha aos ombros. Quem chegava via‑o estabelecido no seu canto, perna direita cruzada sobre a esquerda, os dedos de uma mão encaixados nos da outra, fato cinzento, sentado no sofá de veludo cinzento, um sofá sem requinte nem carácter que a custo cumpria a missão de tornar mais acolhedor o gabinete do candidato. Ainda na noite anterior enfrentara cinco mil almas no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, com palavras de vitória. O último ato daquela que seria, «porventura» (dizia ele), a última campanha eleitoral da sua vida. Regressado a Lisboa, podia estar cheio de glória da consagração da véspera. Mas não. Estava exaurido e conformado. Não tinha nem sombra do otimismo que o empurrara país acima, país abaixo, todos os dias desde o início de novembro.

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Era apenas o segundo dia, nesses quase três meses, em que Soares não saía de casa para fazer campanha. O primeiro foi o dia de Natal – ainda pensou em ir para a rua buscar votos, mas a santidade da data e o zelo do staff não deixaram. O segundo era aquele sábado frio e luminoso, véspera de eleições, dia santo de reflexão. Apesar do cansaço e da proximidade da derrota, Soares não se deixou ficar no sofá da sala. Convocou à sede de campanha a irmandade que o tinha acompanhado no último combate.

A meio da tarde, foram entrando na assoalhada que tinha sido a base do candidato. O gabinete estava quente, mais aquecido do que pedia esse dia de falso janeiro, porque Soares exagerava sempre com os caloríferos. Mas nem por isso aquele era um lugar caloroso. Era inóspito, como todas as divisórias do segundo e do terceiro andar do número 1 da Avenida Duque de Loulé. Salas desconsoladas, com espaço a mais e gente a menos, móveis baratos, alguns só para disfarçar o vazio, fios à mostra, o teto falso amarelado e, por todo o lado, sinais de ressaca de uma festa que nunca aconteceu. Nas janelas havia bandeiras do MASP, as novas, com a inscrição «Soares 2006» e a esfera armilar transfigurada em coração, e também uma antiga, com a rosa sobre o verde e vermelho da nação. Nas paredes, coladas com fita‑cola, impressões com baixa definição de fotografias do candidato com o seu pessoal, o capitão do navio a posar com a tripulação. Numa secretária estava colado um cartão de Natal com a imagem do casal presidenciável – Soares mais próximo, Maria de Jesus logo atrás, com a mão repousando sobre o ombro esquerdo do marido, uma réplica quase perfeita da foto feita para o cartão do Natal de 1985, só que com os dois protagonistas vinte anos mais velhos.

"Estou preparado para tudo, até para os piores cenários. Fiz o que devia fazer, mas sei que pode acontecer o pior"
Mário Soares, um dia antes da derrota

As janelas que davam para a Rua Rodrigues Sampaio tinham sempre fechados os estores gastos – precaução imposta pelo acaso de, do outro lado da rua, estarem as janelas da redação do Diário de Notícias. A clausura fazia ainda mais taciturno o ambiente.

Os convidados chegaram espaçadamente, que a reunião tinha sido convocada com pouca antecedência. Conforme entravam, iam‑se dispondo nos sofás IKEA e nas cadeiras IKEA do gabinete de Soares. Vasco Vieira de Almeida, António Mega Ferreira, Vítor Ramalho, Marcos Perestrello, António Manuel, João Paulo Velez, Ivan Nunes, José Manuel dos Santos, Alfredo Caldeira, Artur Pereira, António Campos, Nuno Severiano Teixeira, Medeiros Ferreira, Mário Barroso… Aos poucos ia‑se fechando um círculo mal desenhado à volta do candidato. A conversa passou das trivialidades para as coisas sérias.

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– Estou preparado para tudo, até para os piores cenários. Fiz o que devia fazer, mas sei que pode acontecer o pior – anunciou Soares.

Daí a 24 horas teria a certeza, mas naquele momento já tinha poucas ilusões. As sondagens eram unânimes a prever para o fundador do PS a mais dura derrota de sempre na história do partido. Os números da véspera oscilavam entre a hecatombe e o desastre – 12,4%, segundo o barómetro DN/TSF; 16,9% na sondagem Expresso/Renascença/SIC. Na melhor das hipóteses, mesmo que conseguisse ficar à frente de Manuel Alegre, não evitaria a vitória de Cavaco Silva à primeira volta.

Depois de meses a descompor os estudos de opinião, Soares não contestava as últimas previsões. Já não dizia que eram mal feitas, nem inúteis, nem trafulhas. Limitava‑se a ouvir com ar carregado. Nessa tarde, foram os outros que se puseram a discutir a evolução das sondagens, que no caso de Soares desenhava o contorno de uma colina: uma subida persistente desde outubro até meados de dezembro, e, depois do pico, uma descida suave que o deixava outra vez a meio da colina. Se Soares fosse cristão, seria o seu Calvário.

– Quem é que aqui acha que podemos passar à segunda volta? -- perguntou Soares. O silêncio comprometido durou segundos que pareceram horas

A inversão da subida, algures entre o Natal e o Ano Novo, era um dos maiores mistérios da candidatura e teve o efeito de um murro no estômago quando foi detetada, apenas duas semanas antes do dia das eleições. Discutiam‑se teses que não passavam de palpites. Ivan Nunes achava que tinha sido o debate de Soares com Cavaco a espantar o eleitorado. Mega Ferreira entendia que tudo se tinha perdido com a insistência do candidato nos ataques ferozes ao seu adversário e à comunicação social, quando devia fazer
um discurso sereno e positivo…

Mas isso era passado e já estava distante. Soares queria era falar do dia seguinte. Só havia três hipóteses, e para ele era claro o que havia de fazer em cada uma. Se Cavaco vencesse à primeira, dar‑lhe os parabéns; se Alegre passasse à segunda volta, declarar‑lhe o seu apoio; se fosse ele, Soares, a continuar na contenda, recomeçar o trabalho. Este foi, no entanto, o discurso de que menos falou. Era a hipótese menos provável e Soares sabia‑o.

– Fiz o que devia, cumpri o meu dever… Não tenho nada a perder. Quem tem a perder é o Cavaco, se não passar à primeira. Para quem começou com 60%… – comentou meditativo, já na sala de reuniões, para onde o grupo se trasladou, porque já era demasiado numeroso para se arrumar no gabinete do candidato.

Foi à volta da grande mesa de reuniões que Soares quis conhecer as expectativas dos homens que o tinham apoiado.

– Quem é que aqui acha que podemos passar à segunda volta?

O silêncio comprometido durou segundos que pareceram horas. Aquela era a questão com que ninguém queria ser confrontado. As primeiras respostas foram ao lado, a fingir que não tinham percebido. Os circunstantes distraíam-se sobre o significado de «poder passar» à segunda volta – poder, claro que podiam… Soares cortou a exegese da sua pergunta e clarificou os termos:

– Eu, como disse, estou preparado para o pior. Quero é saber o que é que
vocês acham.

Olhou para os colaboradores com os olhos cansados, um olhar que a uns pareceu de desafio, a alguns de inquietação e a outros de malícia, ou tudo junto. Como o soberano que testa os súbditos, a ver quem cai em pecado de idolatria ou quem denuncia a traição da descrença. Se havia uma resposta certa, ninguém sabia qual era. E a resposta honesta, poucos estavam preparados para a dar. O embaraço com que os súbditos iam hesitando, os muitos ses que preludiavam cada consideração, eram boa medida do pessimismo que reinava na corte.

«É difícil, mas podemos passar», tateava Marcos Perestrello; «as sondagens ainda deixam uma grande margem de incerteza», atalhava António Manuel; «o eleitorado do PS está muito dividido, pode haver aí uma hipótese», tentava Mega Ferreira. Apoiavam‑se uns aos outros nas vírgulas e nas reticências, como se assim disfarçassem a falta de convicção. Só Vítor Ramalho, o «soarista íntimo», e Artur Pereira, o seu braço‑direito, punham as mãos no fogo pela vitória. Este lançou‑se mesmo numa diatribe contra a descrença dos restantes, que culminou com o indispensável:

– Se não fosse para ganhar eu não estava aqui.

– Se não estivesse, também não se notava grande diferença – ouviu‑se num murmúrio mal sussurrado.

– Por isso é que isto não correu bem! – explodiu Soares, travando a bulha

– Vocês nunca se entenderam, era cada um a puxar para seu lado!

A reunião acabou. Nessa noite, Soares convidou Ramalho para jantar em sua casa, com a família. Ainda estava a assimilar a perspetiva do dia seguinte, o dia que seria o da eleição de Cavaco Silva para a Presidência da República. Interrogava‑se sobre o seu país, seduzido pela tecnocracia bacoca do economista que se apresentava como salvador da pátria sem ter modos de a salvar.

E refletia sobre a deriva populista das eleições, o discurso fácil de Alegre contra os partidos e contra o sistema.

Em paz: quem tem uma biblioteca e um jardim tem tudo

Estava acre, desapontado, mas em paz consigo. Tinha cumprido o seu dever, tinha dado o seu melhor, tinha feito exatamente aquilo em que acreditava. Sentia que o tempo havia de lhe dar razão. Animou‑se e quis falar do que faria a partir de segunda‑feira – os seus planos não incluíam a mudança para o Palácio de Belém.

Ao longo de toda a campanha, Soares tinha desdramatizado a hipótese de derrota. Podia sair da contenda sem proveito eleitoral, mas não faria disso um drama – voltaria à vida cheia que tinha antes. Havia a Fundação, os seus livros e o novo jardim no terraço da casa do Campo Grande. «Se temos uma biblioteca e um jardim temos tudo», escreveu Cícero, cuja sabedoria tantas vezes inspirara Soares. Também naquele caso o filósofo romano estava certo.

Um dos projetos a que Soares se tinha dedicado nos meses anteriores à candidatura, enquanto lhe pesava prós e contras, era a sua nova biblioteca, que iria ocupar todo o andar por cima do seu, no apartamento pertencente ao amigo José Manuel Galvão Teles. O advogado tinha‑se mudado e Soares alugou‑lhe a casa para a encher de livros. Seriam assoalhadas temáticas –ficção lusófona nesta, Religião naquela, História além, ensaios sobre o iberismo na estante ao lado… Ficaria ali uma parte dos seus 60 mil livros, dos quais metade já doara ao arquivo da Fundação. O trabalho ficou suspenso por causa da candidatura e era possível fotografar esse instante: foi quando o ex‑Presidente deixou em cima da bancada da cozinha, no apartamento deserto, uns montes de livros acabados de desencaixotar e prontos para serem arrumados nas prateleiras. Ali ficaram, no sítio dos tachos e das panelas, durante parte do verão, todo o outono e o início do inverno. Soares podia agora acabar de os arrumar.

Planos não lhe faltavam, era só uma questão de arrumar o episódio das presidenciais para voltar a viver como habitualmente.

Havia outra tarefa adiada, um andar mais acima: no topo do mesmo edifício do Campo Grande, rodeado a toda a volta por um jardim que Gonçalo Ribeiro Telles estava a elaborar, Soares transformara o antigo quarto de Galvão Teles num escritório pensado exclusivamente como refúgio para escrever novos livros. A secretária de madeira escura estava abandonada há meses, virada de frente para a estante meio cheia onde se acumulavam umas dezenas de volumes sobre Salazar. Era a bibliografia que havia reunido para preparar um trabalho que ficaria algures entre a biografia e as memórias de Soares sobre o ditador que combateu.

Mas tinha mais obras na ideia, ele que é um escrevedor compulsivo e que diz de si que escreve «com excessiva facilidade, depressa, e nem sempre bem».

Estava por acabar um livro que partia de longas conversas com Frederico Mayor, seu homólogo no estatuto de «ex», no caso, ex-director-geral da UNESCO. Tinha outra obra começada, sobre as grandes personagens com quem se cruzou ao longo da vida, um misto de memórias e de história pessoal do século XX.

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E havia outro projeto, entretanto pendurado a um canto, para fazer uma sequela do seu livro mais célebre, Portugal Amordaçado. Seria um olhar sobre o país a partir do 25 de Abril, retomando o fio da história mais ou menos onde a obra original o tinha deixado. Planos não lhe faltavam, era só uma questão de arrumar o episódio das presidenciais para voltar a viver como habitualmente.

Por volta das quatro da tarde de domingo, Soares já tinha a certeza de que a sua noite ia acabar cedo. A única coisa que lhe poderia atrasar a ceia seria a eventual incerteza sobre a passagem de Alegre à segunda volta. Sobre o seu próprio resultado, os primeiros dados das sondagens das televisões, feitas à boca das urnas durante a manhã, garantiam que Soares ficaria em terceiro. Era uma novidade, aos 81 anos: já muitas vezes tinha vencido e tinha perdido, mas nunca se tinha visto tão longe da vitória. Deixou‑se ficar mais algum tempo por casa, com a mulher, os filhos e o amigo António Campos, que entretanto lhe bateu à porta.

Quando as televisões anunciaram as previsões – que devem ter sido fáceis, pois nenhuma falhou – já tinha ditado à secretária Osita o discurso de reconhecimento da derrota. 

– Isto é ainda pior do que eu esperava – comentou Soares, com tristeza, para o velho companheiro do PS. Amargurava‑o a vitória de Cavaco, a quem não reconhecia qualidades para chefiar o país, e não compreendia o resultado de Manuel Alegre, a quem não tinha ouvido nenhum argumento que valesse um voto. A política mudou, a democracia mediática é outra coisa, constatou, virando‑se para o amigo: Cavaco triunfava sem ideologia nem comprometimento, Alegre quase chegava lá sem o apoio do partido e sem gente que se visse na rua.

Foi já no Hotel Altis, onde chegou por volta das seis da tarde, de braço dado com a mulher, que Soares conheceu os resultados definitivos: 50,5% para Cavaco, 20,7% para Alegre, 14,3% para Soares, 8,5% para Jerónimo de Sousa, 5,3% para Francisco Louçã. A corte reuniu‑se no último andar do Altis, como mandava a tradição soarista, e concentrou‑se na maior das duas salas reservadas pela candidatura. Na outra, mais pequena e recatada, à qual só tinham acesso a mulher, os filhos e os colaboradores mais próximos, Soares conferia a um canto os pormenores da sua última declaração em noites eleitorais.

Quando as televisões anunciaram as previsões – que devem ter sido fáceis, pois nenhuma falhou – já tinha ditado à secretária Osita o discurso de reconhecimento da derrota. Tinha‑o escrito em casa, à mão, como sempre, de um fôlego. O texto era curto e tinha poucas rasuras. Mandou calar os televisores da sala mais pequena e chamou os principais responsáveis da campanha para lhes ler o discurso. Não havia nenhuma referência a Alegre, e ninguém comentou a sua falta.

Perdeu mas quis semear para o futuro

Os amigos acharam‑no abatido, pouco falador. Ferido, mas com panache. Com o fato azul‑escuro de riscas impecavelmente aprumado, o casaco permanentemente vestido, o queixo para cima. As duas salas no topo do Altis eram como um velório à americana, com canapés e aperitivos, como se o alimento do corpo compensasse a tristeza da alma. Soares circulou pouco, quase não socializou, mas ainda foi buscar uma reserva de ânimo para puxar pelos mais cabisbaixos.

– Então, está muito descorçoado? – perguntou ao cruzar‑se com Ivan Nunes.

– Não, mas acho que este resultado é injusto para si – respondeu‑lhe o mais jovem conselheiro do Movimento de Apoio Soares à Presidência (MASP).

– Ah, não se preocupe com isso!

Treze andares abaixo, na mesma sala onde Soares tinha apresentado a candidatura, cinco meses antes, num clima de crença sem limites, não havia canapés nem aperitivos, só o atordoamento da derrota. Os números seriam arrasadores: 785.355 votos, 14,3%!

Nunca, em trinta anos de democracia, o PS tinha ficado aquém da fasquia do milhão de votos em eleições nacionais. O pior que lhe tinha acontecido, a ele Soares, fora o milhão e quatrocentos mil da primeira volta das presidenciais de 1986 – três semanas depois, mais do que duplicava esse resultado e vencia Freitas do Amaral, ultrapassando os três milhões de votos. Mesmo o PS, na noite eleitoral mais difícil de sempre, em 1985, quando Almeida Santos mediu forças com Cavaco Silva, conseguiu um milhão e duzentos mil votos, 20,7%.

Telefonou então a Cavaco. O vencedor achava que ainda não era hora de celebrar e reagiu com a cautela que lhe está no ADN. Soares desembaraçou‑se de formalidades e resolveu a conversa: "Não se preocupe, o senhor já ganhou!"

Olhando para tempos mais próximos, o resultado de Soares em janeiro de 2006 desbaratava quase dois milhões de votos que José Sócrates tinha conquistado para o PS, um ano antes, nas legislativas. E até comparando com as autárquicas de outubro de 2005, que já tinham sido uma noite de má memória, Soares deixava fugir mais de um milhão de votos. Feitas as contas, o candidato oficial do PS valia tão pouco como a soma dos resultados de Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã. E a esquerda, toda junta, não conseguia impedir a maioria absoluta de Cavaco Silva.

Que não haveria segunda volta ficou claro ainda antes das nove da noite, menos de uma hora passada sobre as primeiras projeções televisivas. Só a espera por essa confirmação tinha impedido Soares de fazer mais cedo o que tinha de ser feito: dar os parabéns ao vencedor, assumir a derrota e ir cear para casa da filha Isabel, com a mulher e alguns amigos.

Telefonou então a Cavaco. O vencedor achava que ainda não era hora de celebrar e reagiu com a cautela que lhe está no ADN. Soares desembaraçou‑se de formalidades e resolveu a conversa:

– Não se preocupe, o senhor já ganhou!

Estava pronto para descer à sala da conferência de imprensa, mas ainda teve que esperar por José Sócrates, que vinha a caminho do Altis, capitaneando, de muletas, uma grossa delegação governamental. São só uns poucos quarteirões de distância do Largo do Rato até ao hotel, mas, com o chefe do Governo naquele estado, subir e descer escadas, entrar e sair do carro, percorrer corredores, eram operações delicadas que exigiam vagar. Soares esperou, recebeu o abraço solidário de Sócrates e de mais uma dúzia ou isso de governantes e pôde, enfim, terminar a função.

Passava pouco das nove e meia quando Soares irrompeu na sala Europa, aclamado como se fosse um vencedor. O espaço estava finalmente cheio, com pouco povo, mas bastantes VIP – membros da comissão política, da comissão de honra e da direção do PS. Atrás de si, o candidato arrastava uma procissão breve onde se reconheciam as muletas topo de gama de Sócrates, o perfil aquilino de Vieira de Almeida, o sorriso patriarcal de Almeida Santos, o à vontade de António Campos, a pose fidalga de Sérgio Sousa Pinto e a corpulência organizadora de António Manuel.

«Soares é fixe! Soares é fixe! Soares é fixe!». Nunca, nos quinze dias de campanha e nos três meses de pré‑campanha, se tinha ouvido aquele grito com tanta convicção e tanto fervor. A emoção da derrota, a perturbação da hecatombe, devolveram ao soarismo uma excitação vagamente histérica.

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Subido ao estrado, Soares adotou «uma lentidão de frade que se regala» (a descrição é do Eça). Pousou na tribuna as folhas A4 com o discurso, tirou os óculos de dentro do casaco, deixou pousar a efervescência e foi ao assunto:

– Respeito em absoluto a vontade popular. Os resultados foram contrários às minhas expectativas, o doutor Cavaco Silva ganhou à primeira volta. Assumo esta derrota com o sentimento de dever cumprido, fair‑play democrático e sentido de responsabilidade. Resta‑me felicitar o doutor Cavaco Silva, o que acabo de fazer pelo telefone, e desejar‑lhe êxito no exercício da sua alta magistratura, para bem de Portugal e dos portugueses.

Como a colheita eleitoral era fraca, Soares apontou para outra sementeira: a «sementeira de ideias» de que tinha falado ao longo da campanha, espécie de prémio de consolação quando percebeu que seria má a safra de votos.

– Esta minha campanha ficará como uma referência cívica para o futuro – vaticinou – Lançámos ideias novas, em defesa de grandes causas e advertindo contra novos perigos. Apesar da derrota sofrida, que não desejo minimizar, essas ideias farão o seu caminho […]. Pelo que a vida me ensinou, este combate cívico não termina hoje. Em democracia perdem‑se ou ganham‑se eleições, mas só é vencido quem desiste de lutar.

Levantou‑se meia sala, voltou a efervescência gasosa do «Soares é fixe.»

– Eu, como mais uma vez demonstrei, não desisto de lutar. O meu empenhamento cívico ao serviço de Portugal e dos portugueses será total, como sempre foi.

Nem uma palavra do discurso de Sócrates aliviou Soares da responsabilidade de um resultado demolidor.

Dobrou os papéis, guardou‑os no bolso, tirou os óculos e deixou um «muito obrigado a todos». Desceu do palco, abraçou Sócrates, ambos emocionados, ambos derrotados. Agradeceu‑lhe mais uma vez o apoio, do qual nunca, durante toda a campanha, se queixou.

Pouco tempo depois, já devolvido à sede do PS, Sócrates faria também a sua declaração de perdedor, atropelando Manuel Alegre, que falava à mesma hora. O líder socialista agradeceu a Soares a disponibilidade, a generosidade, a entrega, o exemplo, enfim, tudo isso que ao longo da campanha deixara «sensibilizados» e «emocionados» os dirigentes do partido, que olhavam para o fundador com o desvelo com que se contempla uma espécie em vias de extinção. Mas nem uma palavra do discurso de Sócrates aliviou Soares da responsabilidade de um resultado demolidor.”

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