786kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Uma casa revirada, 180 euros a menos e uma idosa fechada à chave dentro da arca frigorífica. O que aconteceu a Maria de Lurdes?

Para assaltar a casa de uma idosa não é preciso fechá-la numa arca frigorífica, mas foi isso que aconteceu a Maria de Lurdes. PJ já prendeu o suspeito, que será agora ouvido no DIAP de Aveiro.

Dia sim dia não, ou de dois em dois dias, Maria de Lurdes Marques ia à mercearia de Maria Irene Saramago — ou Mariazinha da loja, por ser dona da única mercearia da terra — é comprar os ingredientes para as suas regueifas, um pão ligeiramente mais doce que o normal, em forma de donut gigante, com canela e meio mal cozido, que depois vendia no Largo da Igreja de São Martinho de Salreu, em Estarreja. “Eram mesmo boas as regueifas da Maria de Lurdes, e o pão de ló também”, diz a dona da mercearia que a conhecia bem. “Tão boas que havia pessoas que encomendavam muitas e, por vezes, ficavam a dever-lhe dinheiro”.

Por entre suspiros, era sobre as mazelas próprias da idade que Maria de Lurdes mais se queixava, quando se sentava na cadeira verde de plástico que há em frente ao balcão no centro da mercearia. “A Lurdes chegava, sentava-se ali, falava da vida, de nada, portanto, do negócio que ia mal, de já quase não poder cuidar da criação, da falta de dinheiro, das dívidas que não lhe pagavam”, conta Maria Irene Saramago, de 81 anos, dona da única mercearia da longa rua Adou de Cima, apontando para a cadeira que ficará vazia até que um jovem exausto se deixe cair nela, endireitando-se apenas para dar uns golos numa cerveja retirada diretamente do frigorífico da mercearia.

Está muito calor. Os cães estão deitados nas valetas, na pouca sombra que os ramos que caem para cá dos muros oferecem. Os gatos estão estendidos nos parapeitos de pedra das janelas e quase não há ninguém na rua.

A mercearia de Maria Irene Saramago, e a cadeira onde Maria de Lurdes se sentava a falar com ela (D.R.)

No dia 30 de maio, Maria de Lurdes foi encontrada morta, fechada à chave dentro da sua arca frigorífica, sem marcas aparentes de violência física. Mas a ausência de ferimentos não dissipa a tese de que possa ter sofrido uma morte bastante violenta. A polícia ainda não colocou de lado a hipótese de que tenha sido trancada com vida naquele compartimento exíguo e gelado. A Polícia Judiciária de Aveiro (PJ) deteve na terça-feira, 18, o suspeito. De acordo com as informações prestadas à TVI24 por fonte policial, trata-se de um homem de 44 anos, sem emprego estável. Conhecia a vítima e “tinha a casa sinalizada”. O homicídio terá ocorrido durante o assalto. Ainda segundo a mesma fonte, o suspeito terá manietado a vítima, e colocado fita adesiva na boca para a impedir de chamar ajuda.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Maria de Lurdes terá morrido sufocada.

O suspeito seria irmão de uma antiga vizinha da vítima e tinha antecedentes criminais.

A história

A última vez que Maria Irene Saramago a viu foi à porta da missa de domingo, a 21 de maio, nove dias antes de a notícia varrer a vila num arrepio. Ninguém tinha estranhado o desaparecimento porque, desde que veio do hospital, há cerca de um ano, Maria de Lurdes recuperava lentamente de uma fratura na bacia e pouco saía de casa. Mas depois de cinco dias sem ninguém a ver, os alertas soaram.

Cecília Rebelo não vive sozinha, tem muitas vezes a filha e o neto com ela em casa, mas o seu marido, “que só se pode mexer da cama para a poltrona e da poltrona para a cama” e já tem 90 anos, não a poderá defender de uma situação semelhante. “Eu só quero que apanhem quem fez isso, porque agora estou sempre aflita quando ouço barulho perto daqui ou vozes de homens à noite. Tenho duas arcas enormes e deitei fora as chaves, porque só de pensar no fim que a Lurdes teve fico toda arrepiada até com este calor. Até as chaves dos armários e das arcas de guardar lençóis. Dei tudo à minha filha para levar para casa dela”.

"Eu só quero que apanhem quem fez isto porque agora estou sempre aflita quando ouço barulho perto daqui ou vozes de homens à noite. Tenho duas arcas enormes e deitei fora as chaves porque, só de pensar no fim que a Lurdes teve, fico toda arrepiada."
Cecília Rebelo, vizinha de Maria de Lurdes

Na aldeia liga-se a morte de Maria de Lurdes a um episódio anterior de violência de que terá sido alvo, quando um grupo de pessoas que lhe devia dinheiro a agrediu, fraturando-lhe a bacia. “O que dizem na aldeia é que foram umas pessoas que lhe deviam dinheiro. Ela queria queixar-se ao tribunal e então empurraram-na”, recorda Cecília Rebelo, de 84 anos, vizinha de Maria de Lurdes.

Se esse primeiro ato de violência está ou não ligado ao sucedido é impossível saber. A Polícia Judiciária de Aveiro, contactada pelo Observador diversas vezes ao longo das várias fases desta história, manteve sempre que “está a investigar” e que “não é possível ainda avançar informação, apenas quando e se houver detidos”.

“Queixava-se bastante das dores na anca, de já não poder ir a Estarreja, ao mercado, de bicicleta, ficava muito em casa e deixou de falar tanto com as pessoas”, diz Cecília, que vai sempre frisando ser apenas uma “porta-voz” daquilo que se comenta pela aldeia. Confirma apenas o que já Maria Irene Saramago — e as próprias autoridades — tinham dito: a porta não estava arrombada. E a menos que alguém tenha trocado a fechadura, as fotos da casa de Maria de Lurdes, ainda com as fitas azuis e brancas da Polícia Judiciária, mostram de facto a porta intacta.

O número 53 da Rua de Adou de Cima, em Salreu, onde vivia e foi encontrada morta Maria de Lurdes Marques, de 80 anos (D.R.)

O medo paira na vila mas o que aconteceu a Maria de Lurdes pode ter-lhe estado destinado apenas a ela. Não é certo que tenha sido um assalto.

“A ideia era estar mais com ela, a minha única família”

Adou de Cima é só uma rua, e uma rua apertada. Os carros são obrigados a parar nas reentrâncias que os portões das casas desenham, para deixar passar quem vem em sentido contrário. As pessoas conhecem-se todas, muitas nunca saíram da vila. Manuel Marques, 72 anos, irmão de Maria de Lurdes, cresceu em Salreu, apesar de ter escolhido passar mais de metade da sua vida nos Estados Unidos. Trabalhou como comprador-chefe de um grande supermercado e foi jornalista no Jornal Luso-Americano.

Como fazia quase todos os dias desde que voltou para Portugal, naquela semana Manuel ligou a Maria de Lurdes várias vezes. Só que ela não atendia. Ligou então para a mercearia de Maria Irene, mas Maria Irene também não tinha visto a sua irmã. Os vizinhos mais próximos dela também não. Pegou no carro e foi ver onde ela estava. Não estava em lado nenhum. A casa estava desarrumada e o saco de comida para os gatos, que uma funcionária da mercearia tinha lá levado uns dias antes, tinha sido esfiapado pelas garras dos bichos famintos. Manuel chamou os bombeiros e a GNR, que por sua vez chamou a PJ. Foi a Judiciária que pediu a Maria Moutela, empregada que ajudava Maria de Lurdes em casa, que abrisse a arca. Não nos foi possível encontrar Maria mas, logo no dia em que o corpo foi descoberto, tinha dito ao Correio da Manhã ter dado “um grande grito” quando se deparou com o corpo da patroa.

"Pode ter sido tudo uma terrível coincidência, mas também há a hipótese de lhe terem querido calar a voz para sempre. Havia pessoas que lhe deviam dinheiro, ela queixava-se muito disso, tanto a mim, quando me ligava para a América, como aos vizinhos"
Manuel Marques, irmão de Maria de Lurdes

Manuel Marques recebeu a notícia pouco depois de chegar a Portugal e não está preparado para aceitar que a vida da sua irmã tenha chegado ao fim, de uma forma tão atroz, por causa dos 200 euros que lhe tinha deixado na carteira oito dias antes — sendo que 20 euros foram para a empregada, pelo que sobravam apenas 180. “Pode ter sido tudo uma terrível coincidência, mas também há a hipótese de lhe terem querido calar a voz para sempre. Havia pessoas que lhe deviam dinheiro, ela queixava-se muito disso, tanto a mim, quando me ligava para a América, como aos vizinhos”, diz ao Observador.

Manuel esperava vir passar mais tempo com a irmã, agora que tinha voltado de vez para Portugal. O inglês ainda espreita de muitas frases, disposta em formas de expressão como “breakdown”, que ele utiliza para falar do seu último mês. “A minha irmã era a única família direta que tinha. Fiquei muito abalado. Chego aqui com a ideia de reunir a família mais vezes, até pensei em melhorar a casa dela, e acontece isto”.

O juiz mais justo

Manuel não se culpa por ter estado fora — “mesmo que aqui estivesse podia não evitar nada” — mas não quer deixar o caso esquecido. Há várias coisas que lhe enchem a cabeça de dúvidas, apesar de estar sempre a querer esquecer-se. A primeira é o facto de a porta não ter sido forçada; a segunda é o facto de Maria de Lurdes já ter sido alvo de uma agressão que a levou ao hospital; a terceira é o valor do roubo: quem entrou na casa levou apenas 180 euros em dinheiro. Pelo menos nas contas de Manuel Marques.

“Quem julgamos nossos amigos às vezes são os nossos inimigos, e ela era fácil de manipular. Seria fácil convencê-la a dar dinheiro para uma burla qualquer, ou alguém se fazer de seu amigo só porque às vezes lá ia cozinhar ou ajudar com a criação”, diz Manuel, que, a meio de uma nova frase, diz não querer falar mais — chega de se lembrar de detalhes e do “mal que as pessoas são capazes de fazer”.

"As pessoas comentam que ela queria pôr em tribunal as pessoas que a maltrataram, que a agrediram e que ainda por cima lhe deviam dinheiro. E espero que não tenha só ameaçado, espero que esteja em tribunal. E, se não estiver no dos homens, está lá em cima, e Ele é o juiz mais justo"
António, habitante de Estarreja que frequentava a igreja onde Maria de Lurdes vendia regueifas

A igreja onde se fez o funeral de Maria de Lurdes, e onde ela vendia as suas regueifas, está fechada. O sol faz ricochete nos azulejos e devolve um calor que se sente muito antes de chegarmos à porta. O padre Arménio Dias está em casa, é hora de almoço e recebe o Observador com poucas palavras. Pede paz à alma de Maria de Lurdes, que apenas conhecia de ver vender algumas coisas perto da Igreja. “É preciso que descanse na paz de Deus, que a população fique em paz também e que a polícia continue o seu trabalho sem interrupções”. As palavras serenas do padre não apaziguam toda a gente.

Sentado debaixo de umas árvores está António, um nome que surge depois de cinco ou seis segundos de conversa e com o aviso — “não tenho apelido”. Está à espera do padre. Está aqui há “um par de horas”, sentou-se um pouco para se refazer da caminhada e do calor, mas o padre ainda não chegou da hora de almoço e António diz que não se sente com coragem para voltar a casa sem falar com o padre. O assunto é só seu, mas o de Maria de Lurdes diz respeito a todos. “Claro que estamos todos com medo. Eu não conhecia a senhora, mas todos ouvimos a história. Qualquer uma destas casas pode ser assaltada e nós já não temos força para resistir a ninguém que nos queira fazer mal”, diz António.

E também ele conhece a história da agressão, e também ele espera justiça: “As pessoas comentam que ela queria pôr em tribunal as pessoas que a maltrataram. E espero que não tenha só ameaçado, espero que esteja em tribunal. E, se não estiver no dos homens, está lá em cima, e Ele é o juiz mais justo”.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora