Há dois Chris Waddle. O Waddle futebolista é uma figura de primeira água, um ícone do futebol mundial dos anos 80/90, tanto pelo cabelo comprido como pelos dribles sempre colado à esquerda. Terceiro futebolista mais caro de sempre em 1989 com a transferência do Tottenham para o Marselha, onde é tricampeão francês e ganha a Völler um concurso de penáltis sui generis. O Waddle cantor é uma estrela pop, 12.º classificado do top + inglês, em 1984, com Glenn Hoddle, e líder das cantorias na Albânia, com Basile Boli. Ouçamo-lo. Um, dois, um, dois, teste.

Cruuuu, cruuuuu (ligar para Inglaterra implica ouvir um toque diferente)
Cruuuu, cruuuuuu, click (ahhh, este clique denuncia alguém do outro lado)

Good morning.
Morning? Good night.

Sorry, é um hábito, baralho-me sempre.
(silêncio)

Sou jornalista de Portugal, tudo bem?
Okay, e tu?

Bem, obrigado. Gostava de fazer-lhe umas perguntas sobre os anos 80.
Go ahead.

Quando olha para trás, qual é a primeira imagem como jogador de futebol?
Uffffff, criança, muito, muito pequeno. Como qualquer um de nós, eu, tu e tantos outros, jogava futebol de rua. Crescíamos assim. E não havia regras nem número de jogadores certos. Tanto éramos uns oito como uns 40, tudo ao molho e fé na bola. Devia ter uns oito anos quando realmente percebi a minha paixão pelo jogo. Adorava passar a bola por entre as pernas dos mais velhos, sabes? Conheces aquela sensação de veres o outro a vir na tua direção e tu, numa fração de segundo, saberes exatamente como meter o pé na bola para ir buscá-la ao outro lado? Gold, gold. What a feeling. Só havia um problema.

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Qual?
As nódoas negras. Saía dos jogos totalmente marcado.

E, aos 20 anos, já estava a jogar no Newcastle.
Até parece fácil, right? Not a chance. Entre o amadorismo e o profissionalismo, passei um tempo a trabalhar.

Onde?
Numa empresa de salsichas.

Whaaaaat?
Calma: não as fazia, claro; apenas empacotava.

Ah bom. Como nasce a ideia do cabelo comprido?
Aguentaste bem, well done. Só me perguntaste isso ao terceiro minuto de entrevista. Há pessoal que não se contém e demora uns segundos.

É uma ofensa?
Não, claro que não. Ainda hoje, toda a gente se mete comigo por isso e já passou tanto tempo. Lembras-te do Higuita?

Claro. Dele e do Valderrama.
Boa, isso mesmo. Lembras-te do West?

Claro, o nigeriano.
Pronto. Esses dois são posteriores a mim e há ainda quem se lembre de mim.

Dava ares de Bon Jovi.
Ahahahahah, essa nunca tinha ouvido. Nem ele, provavelmente. Digo-te: aquele penteado foi ao calhas. Tinha o cabelo comprido e lesionei-me. Rapei-o e lesionei-me outra vez. E agora?

Sim, e agora?
Deixei-o crescer nos lados e só o cortei no meio. Deu sorte porque nunca mais me lesionei.

Estamos a falar de que época?
Isso é Newcastle [1980-1985].

Como reagem as pessoas do clube?
Foi divertido, sabes? No primeiro jogo com esse corte, ouvia todo o tipo de comentários desde as bancadas. Até me lembro de ter ouvido alguém dizer, alto e bom som, durante um lançamento lateral: ‘Hey Chrissy, o que é que foste fazer ao teu cabelo?’

Xiiiiiiiii.
Calma. Duas semanas depois, no jogo seguinte em casa, não ouvi nenhum comentário trocista. Olhei para as bancadas e vi que 60/70% dos adeptos estavam com o meu corte. Quando vou para casa, de carro, passei por uma série de cabeleireiros com grandes letreiros nas vitrinas: ‘Chrissy Waddle perm, £5”

A vitória do penteado despenteado. Continuou assim em Marselha?
Foi assim até ao fim da carreira, non-stop.

Nunca teve rivais?
Huuummmm, há um.

Quem?
Völler, Rudi Völler. Eles metiam-se tanto connosco.

Dava-se bem com ele?
Tão bem que até organizámos um mini-torneio de penáltis. Quem falhasse menos, ficava com o título de penteado do ano.

Quem ganhou?
Digo-o orgulhosamente, eu.

No Marselha, encontrou um personagem chamado Cantona.
Só uma época. Ele começou bem, a titular, e depois lesionou-se. Quando se recompôs, já não havia lugar para ele, entre mim, Völler e [Abedi] Pelé. Como homem sensato, o Éric pediu para sair. Simplesmente porque não é do seu feitio ver jogar os outros.

Como era ele?
Tranquilo, até cheguei a sair com ele um jantar ou outro. Só era excêntrico na forma como chegava aos treinos.

Então?
Harley-Davidson. De resto, era um rapaz com a cabeça no sítio, que sabia o seu lugar. Isso viu-se em Inglaterra: campeão pelo Leeds, ícone no United.

E o Waddle, um ídolo no Marselha?
Tudo aquilo foi uma surpresa total. Estava no Tottenham a curtir a pré-época. Mesmo. O clube estava a acertar nas contratações: primeiro com Gazza, depois com Lineker. Estava animado com essa época. Duas semanas depois, estou a viver num hotel em Marselha, com mulher e filho de um ano. No início, foi difícil.

Porquê?
Pela língua, por exemplo.

Ninguém falava inglês?
Digo-te só isto: quem me levava aos treinos era o Mozer.

Ah sim, sim, do Benfica. E então, como era?
Não era. Ele não falava inglês, eu não falava português. Só ouvíamos rádio, músicas francesas manhosas. Às tantas, eu digo-lhe Pelé. Ele olha para mim e responde Bobby Moore. Eu continuo a brincadeira: Jairzinho. Ele também: Bobby Charlton.

Pronto, a barreira linguística está ultrapassada.
Ahhhh. Havia ainda o calor. Aquele sol dava cabo de mim, eram uns 80 graus. Se juntássemos os treinos puxados, era uma mistura explosiva. Às vezes, dava-me para quase desmaiar. Como se isso fosse pouco, tinha uma espécie de selo na testa como o terceiro jogador mais caro de sempre [4,5 milhões de libras].

Fintou esse problema?
Estreei-me com o Lyon e estava em má forma. Eles [do Marselha] queriam mostrar-me ao mundo e eu não conseguia corresponder. Lembro-me como se fosse agora: mudámos do hotel para uma casa a uma segunda-feira. Disse à minha mulher ‘a aventura começa agora; se não der certo, voltamos para Inglaterra.’

E?
Na sexta-feira seguinte, em direto para o Canal +, jogámos com o PSG no Parc.

Uh la la, grande rivalidade.
Uh la la, indeed. Aquilo fervia. Era tipo United-Liverpool. Eles nem se podiam ver. Como o nosso presidente Tapie era de Paris, ele queria ganhar ao PSG no matter what. Era uma questão de orgulho, um parisiense bem sucedido em Marselha.

Insisto, e?
Há um canto para nós, a bola é afastada pela defesa e alguém a recupera. Mete para dentro da área e apareço eu. Páro com o peito, faço um ligeiro chapéu ao guarda-redes e dou de calcanhar com a baliza aberta.

É golo?
Sure, man. Saí disparado e nem sei o que fiz nos 15/20 segundos seguintes. Só depois, muito depois, à noite, a ver o resumo, percebi que passei os placards de publicidade em êxtase. A partir daí, nunca mais, nunca mais mesmo, questionaram o meu valor e o estatuto de terceiro mais caro de sempre.


Até costumo dizer que, a partir daí, parecia o Tattoo da ‘Ilha da Fantasia’ [a primeira grande série norte-americana produzida por Aaron Spelling, antes do ‘Beverly Hills 90210’, em que se conta a história de uma ilha paradisíaca onde qualquer desejo pode ser realizado]. Aquilo em Marselha era, de facto, o paraíso.

Porquê?
Havia uma adoração maciça dos adeptos. Como era o único clube da cidade, todos sem exceção eram do OM. E todos faziam tudo para que os jogadores se sentissem em casa. Entrava num parque de estacionamento e nunca pagava. Ia jantar com a família e o dono do restaurante queria pagar-me as sobremesas ou as bebidas ou as entradas ou tudo. Havia para todos os gostos. Estávamos constantemente em cima da passadeira vermelha.

Boa vida.
O clube era fantástico. O presidente tinha energia, impossível não sentir o seu amor pelo clube. O plantel era formidável. Basta dizer Mozer e Völler. E ainda havia Di Meco, Deschamps, Casoni, Papin. Tantos, tantos, tanto. E tão bons. Ponto curioso: fosse o mais novo ou o mais veterano, todos levavam o equipamento mais as botas para casa e tinha de o lavar de um dia para o outro. Era diferente de onde vinha e isso aproxima-nos mais. Lembro-me que tínhamos uns dois ou três equipamentos disponíveis. Só, mais nada. Isso só mudou quando chegou o Franz Beckenbauer em 1991.

Em três anos de Marselha, és tricampeão francês.
Nada é ao acaso, é como te digo. Se a estrutura for boa desde fora e do topo, ninguém nos derruba. Ainda por cima, tocava o Jump dos Van Halen cada vez que entrávamos em campo. Isso era mágico.

https://www.youtube.com/watch?v=L6-A1j5mTIc

Só faltou a Taça dos Campeões.
É verdade. Perdemos aquela meia-final em Lisboa, com o Benfica, em 1990. Mal perdida, aquilo é mão. Toda a gente sabe, toda a gente viu. É pena um sonho virar pesadelo.

Como estava o balneário nessa noite?
Indignação total. Mal a bola entrou, todos nós fomos ter com o árbitro a dizer-lhe que era mão. Mais que nítida, as imagens confirmam em absoluto. É difícil digerir um lance desses. Custou-nos muito.

Parecida com a mão de Deus.
Olha, outra. Também estava lá.

A sério?
Really. Entrei já com 2-0. O Bobby Robson ficou devastado com o 1-0. Lá está, outro lance de mão evidente. Quando cinco ou seis jogadores se juntam à volta do árbitro, é porque algo de irregular se passou.

Vata e Maradona.
Dois pesadelos. Gémeos do golo maldito.

Em 1986, a Inglaterra foi eliminada por Maradona. E quatro anos depois, no Itália-90?
Grande torneio, estivemos sooooo close de chegar à final. Sempre a sofrer: 1-0 à Bélgica com um golo do David [Platt] aos 119′ mais o 3-2 aos Camarões nos ¼ final. Que emoção.

Nas meias?
A Alemanha, em Turim. Quando Bobby Robson disse ao Gazza para estar atento ao Matthäus, ele vira-se e pergunta ‘quem é esse?’ naquela de desvalorizar o adversário. Foi pena. Quando atirei ao poste, no prolongamento, julguei mesmo que a bola ia entrar.

Gazza e Robson, essa mistura devia ser bonita.
Dois dos grandes. Robson era um treinador sensacional, muito compreensivo. Fui com ele ao Mundial-86, ao Euro-88 e ao Mundial-90. E o Gazza, um personagem sem igual, totalmente imprevisível. Uma vez, estava o Gazza no Newcastle e eu no Tottenham, soube que ele tinha marcado uma reunião com Alex Ferguson e estava a caminho do United. Agarrei-me logo ao telefone e liguei-lhe. Atendeu-me de pronto e disse-me que estava quase em Manchester. Disse-lhe para não ir, que o Tottenham é que era, blá blá blá. Aquela conversa toda, sabes? Ele vacilou. Depois, liguei ao nosso treinador Terry Venables e dei-lhe o número do Gazza. Meio minuto depois, o Gazza recebe uma chamada a fazer-lhe mais ainda a cabeça. O Terry até foi mais longe: ‘comigo, jogas sempre e estás na seleção daqui a três meses’. Resultado: o Gazza deixou-se convencer por nós os dois e deixou o Ferguson pendurado.

E como era o Gazza no balneário?
Crazy.

Como?
Tanto ouvia Phil Collins e Hall & Oates como Sex Pistols.

Música e futebol. Já sei é pró.
Come on…

Aquele Diamond Lights, no dueto com o Glenn Hoddle?
Até fomos ao ‘Top of the Pops’ [um programa semanal da BBC desde 1 Janeiro 1964 sobre o ranking das músicas] e aquilo é como ir a Wembley, à Catedral do futebol. O host do programa apresentou-nos como os novos Wham [George Michael e Andrew Ridgeley] e ficámos um pouco embaraçados mas fizemos tudo bem. Ele [Hoddle] entoou todos os ‘ahhhhh’ e eu todos os ‘oooooooh’.

E o dueto com o Boli?
Isto até estava a correr bem, sabes? Come on.

Conte lá essa aventura. Só para acabar em beleza.
O que posso dizer em minha defesa? Jogávamos juntos no Marselha e ofereceram-me dinheiro. Chegámos a número um na Albânia. Infelizmente, o YouTube recuperou esse vídeo. A ver se isto fica por aqui.