1

O Fisco vai ter acesso a todas as contas bancárias?

O Ministério das Finanças enviou à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) para parecer um anteprojeto de decreto-lei que pretende regular o regime de acesso automático a informações financeiras relativas a residentes. Este diploma pretende transpor uma diretiva comunitária sobre a troca automática de informações obrigatórias na área fiscal, para além de implementar compromissos assumidos no quadro da FATCA (acordo com as autoridades fiscais norte-americanas).

Segundo o parecer divulgado pela CNPD, este anteprojeto “consagra um regime de acesso e troca automática de informações financeiras relativos a contas financeiras qualificáveis como sujeitas a comunicação, independentemente da residência do respetivo titular ou beneficiário”.

A informação diz respeito a “aspetos relevantes da vida privada dos cidadãos” e como tal, sujeita a sigilo bancário.

O anteprojeto resulta de uma autorização legislativa aprovada no quadro do Orçamento do Estado de 2016. A versão final do diploma foi entretanto aprovada em Conselho de Ministros no dia 8 de setembro e seguiu para promulgação.

Há dúvidas sobre a sua constitucionalidade, o que poderá levar Marcelo Rebelo de Sousa a devolver o decreto.

 

2

Estamos a falar de todas as contas bancárias?

Na versão original do projeto apresentado pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, quase todas as contas seriam apanhadas. Pelo menos esse foi o entendimento da Comissão Nacional de Proteção de Dados.

Apesar de excluir contas consideradas de baixo risco de evasão fiscal como as contas de reforma ou pensão, “na verdade, a AT (Administração Tributária) passará a conhecer os saldos de conta bancária (ou o valor de outras contas financeiras) de praticamente todos aqueles que sejam titulares ou beneficiários das mesmas e que residam em território nacional”.

Foi por considerar que traduz uma restrição “desnecessária e excessiva dos direitos fundamentais à proteção de dados pessoais e à reserva da vida privada”, que a CNPD concluiu que o anteprojeto era ilegal e inconstitucional.

O Ministério das Finanças veio entretanto esclarecer que o acesso iria excluir os residentes com contas qualificadas como sendo de baixo risco, por não atingirem um determinado montante.

3

Qual é então o montante a partir do qual o Fisco pretende ter acesso?

Estão em causa dois limites que têm destinatários distintos e que resultam de acordos que Portugal assinou a nível internacional para partilha de informação financeira.

A diretiva comunitária prevê uma troca de informação sobre contas bancárias detidas por residentes estrangeiros em Portugal e por residentes no estrangeiro, mesmo sendo de nacionalidade portuguesa. O anterior governo definiu um limite de mil euros a partir do qual a informação sobre estas contas terá de ser comunicada às autoridades tributárias de outros países. Ficaram isentos desta obrigação os PPR (Planos Poupança Reforma).

O teto dos mil euros aplica-se apenas a contas que existiam até 2015, não existindo limite mínimo para as contas abertas depois do final do ano passado.

No acordo com os Estados Unidos, o limite previsto é o equivalente em euros a 50 mil dólares por titular e aplica-se aos cidadãos americanos ou com ligações aos Estados Unidos que tenham contas bancárias em Portugal.

O governo quer estender o acesso à mesma informação sobre saldos bancários de todos os residentes em Portugal acima de 50 mil euros.

4

Como é que se chega ao limite dos 50 mil euros?

O teto a nível nacional de 50 mil euros refere-se ao montante agregado de várias contas de cada contribuinte por instituição bancária. Eis a explicação das Finanças:

“O acordo FATCA impõe o acesso pela Administração Tributária e o envio aos EUA do saldo anual das contas cujo valor agregado (soma das contas/aplicações de um titular numa mesma instituição financeira) exceda os 50 000 USD, tituladas por cidadãos portugueses ou estrangeiros que tenham algum dos elementos de conexão com aquele país”.

Ou seja, o limite resulta da soma das contas/aplicações de um titular numa mesma instituição financeira, o que irá abranger um universo mais vasto do que apenas o das contas a partir de 50 mil euros. Ninguém consegue para já perceber quantos titulares serão abrangidos. As contas das empresas estão incluídas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

5

Que informação em concreto será facultada ao Fisco?

Em respostas dadas ao Observador, o Ministério das Finanças especifica que se trata de um acesso ao saldo das contas, limitado a uma vez por ano e excluindo os movimentos da mesma conta.

Entretanto, o diploma aprovado em Conselho de Ministros determina que os bancos devem comunicar até ao final de julho os saldos por titular que ultrapassava o limite dos 50 mil euros no final do ano anterior. A lei aplica-se aos saldos no final de 2016 que devem ser reportados até julho de 2017.

6

Governo invoca cumprimento dos compromissos internacionais para justificar o acesso. Quais?

O Ministério das Finanças refere dois acordos internacionais que estabelecem regras vinculativas de acesso e troca de informação financeira que Portugal tem de cumprir.

Em primeiro lugar, temos a diretiva DAC2, que prevê um mecanismo automático de acesso e troca de informações financeiras em relação a contas detidas em Portugal por não residentes e a contas detidas por residentes no estrangeiro, incluindo cidadãos portugueses. Segundo as Finanças, Portugal encontra-se numa situação de incumprimento perante a União Europeia por ainda não ter sido transposta esta diretiva de 2014 que entrou em vigor no início de 2016.

A generalidade dos países europeus, acrescenta a mesma fonte, já incorporou ou está em vias de incorporar estas soluções na sua legislação.

O outro acordo é o FATCA. O Foreign Account Tax Compliance Act (“FATCA”) é uma lei dos Estados Unidos da América que pretende combater a evasão fiscal em relação a rendimentos ou outros ganhos de investimentos feitos fora daquele país. O regime entrou em vigor em 1 de julho de 2014 e é aplicável a cidadãos norte-americanos e a cidadãos estrangeiros com obrigações fiscais nos EUA que são designados por US Persons.

O anterior governo assinou em agosto do ano passado um acordo para a troca de informações relativas a contas financeiras mantidas em instituições financeiras em Portugal.

7

Estes compromissos internacionais impõem o acesso às contas bancárias de todos os residentes?

Não. O parecer da Autoridade Nacional de Proteção de Dados considera que a comunicação de dados financeiros dos residentes em território nacional “está a ir para além daquele ratio (previsto nos tais acordos). Porque, estando em causa contribuintes que não preenchem os critérios legalmente definidos de conexão com a jurisdição de outros Estados, deixa de haver enquadramento para a investigação de evasão fiscal”.

Esta interpretação é confirmada pelo fiscalista Rogério Fernandes Ferreira. Num comentário enviado ao Observador, o especialista defende que “a alegada necessidade da administração fiscal de receber informação sobre dados de contas bancárias portuguesas da generalidade dos residentes fiscais em Portugal, seja com ou sem limite de 50.000 euros, é uma novidade legislativa deste governo que não é imposta por qualquer entidade internacional”.

Por um lado, a referência aos 50 mil dólares no FATCA diz respeito à isenção da necessidade de executar procedimentos de due dilligence (diligência) que se destinam apenas à identificação de contas de cidadãos americanos, e apenas estes. O Ministério das Finanças acrescenta que abrange estrangeiros que tenham algum dos elementos de conexão com aquele país (residência, nacionalidade norte-americana [incluindo casos de dupla nacionalidade, portuguesa e americana], autorização de residência nos EUA, etc.)

Já a diretiva comunitária admite que a necessidade de análise de certas contas possa ser excluída em função do baixo risco de fraude e evasão fiscal. No entanto, esclarece Rogério Fernandes Ferreira, a DAC 2 “apenas diz respeito à troca automática de informações transfronteiriças, versando sobre contas bancárias num Estado-membro da União Europeia que sejam detidas por residentes fiscais de outro Estado-membro”.

 

 

 

 

 

8

Quais os argumentos do governo para generalizar o acesso do Fisco?

A autorização legislativa estabeleceu que a Administração Fiscal portuguesa possa ter acesso a informação equivalente à que será transmitida às entidades estrangeiras”, ou seja, sublinha o Ministério das Finanças “estendemos a todos os residentes o mesmo tipo de acesso que teremos ao abrigo dos acordos internacionais”.

No anteprojeto remetido pela secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais é referido o objetivo de promover um maior alargamento no acesso a troca de informações para finalidades fiscais. Os saldos das contas bancárias são vistos como um indicador do risco de evasão fiscal.

Em causa estão, no essencial, objetivos de combate à fraude e à evasão fiscal através da monitorização do património financeiro dos contribuintes que, pela sua dimensão e variações, revele riscos de fuga ao pagamento de impostos, associados a elevados níveis de informalidade e subdeclaração de rendimentos.

Assim, argumenta o Ministério das Finanças em resposta ao Observador, a “mesma razão que leva em termos internacionais a haver troca de informação sobre saldos bancários é a que justifica em Portugal o acesso, nos mesmos moldes, aos saldos bancários de todos os residentes (excluindo aqueles cuja conta seja qualificada como de baixo risco, designadamente por não atingir um determinado montante).

Não nos parece aliás possível sustentar que fosse admissível o acesso ao saldo bancário de um emigrante português em França com conta em Portugal (DAC2); ou de um cidadão americano residente em Portugal (FATCA); sem que fosse igualmente admissível o acesso nos mesmos termos ao saldo bancário dos outros residentes em Portugal. O Governo anterior aceitou as obrigações internacionais relativas aos dois primeiros casos (Diretiva DAC2 e Acordo FATCA com os EUA, respetivamente)”.

As Finanças argumentam ainda que numa recente avaliação da OCDE (Organização para o Crescimento e Desenvolvimento Económico) sobre os poderes das administrações fiscais no acesso a dados bancários, Portugal está entre os países com poderes mais reduzidos. Acrescenta ainda que todos os países da UE têm mais poderes de acesso.

9

O que responde a comissão de proteção de dados às jusitificações do governo?

A Comissão Nacional de Proteção de Dados avisa que a informação a que o Fisco quer ter acesso, o saldo da conta, não está sujeita a tributação. Defende por isso que não se trata, à partida de uma informação de conhecimento indispensável para o Fisco.

Também a fundamentação relacionada com o risco de evasão fiscal, não é suficiente, por si só para demonstrar a necessidade do dever de comunicação de dados, uma vez que se trata de uma “restrição generalizada do direito à proteção de dados pessoais”.

O parecer contesta ainda o argumento do tratamento igual usado pelas Finanças. “Eventual alegação de que em causa está o tratamento igual dos residentes em território nacional perante a AT (Administração Tributária), uma vez que a AT tem conhecimento dessa informação quanto àqueles que têm conexão com o exterior, não pode proceder porque as situações não são semelhantes – e o princípio da igualdade determina que se trate de maneira diferente aquilo que é diferente”.

10

O governo vai acolher estas dúvidas e reservas da comissão de proteção de dados?

O Ministério das Finanças admite ajustamentos, desde que não coloquem em causa a solução de fundo. Fonte oficial esclarece que face às objeções já levantadas pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, o projeto de diploma já foi revisto no passado, pelo anterior governo. Mas assinala que se trata de um parecer que tem como objetivo apoiar a decisão legislativa.

Em matéria fiscal e de acesso a informações, a Autoridade Tributária está estritamente vinculada ao cumprimento da legislação aprovada pela Assembleia da República, realça. No entanto, o Governo “está a analisar e a ponderar acolher, nomeadamente, as seguintes recomendações específicas da CNPD:

  • Vedar expressamente o acesso por terceiros, qualquer que seja a sua natureza jurídica, aos dados assim obtidos pela AT.
  • Reafirmar a necessidade de decisão da Comissão Europeia ou de parecer da CNPD para a transmissão de dados a países terceiros ao abrigo das obrigações internacionalmente assumidas por Portugal.
  • Reforçar as medidas de segurança relativas à informação em causa.
  • Assegurar o cumprimento das regras de proteção de dados pessoais por quaisquer entidades subcontratadas pelas entidades financeiras.

 

11

O Fisco deve ter acesso a informação que é enviada para outros países?

As Finanças assinalam ainda que as dúvidas levantadas pela CNPD não se colocam exclusivamente a nível nacional.

E, admitindo-se a obtenção da informação para envio a outros países, então, por maioria de razão, dever-se-á admitir também a sua utilização pelas autoridades do nosso país em condições equivalentes e não-discriminatórias.

Sobre este argumento, o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira considera-o precipitado, na medida em que a necessidade de troca automática de informação da forma como está a ser feita ainda está a ser discutida a nível internacional, sobretudo no que diz respeito à sua necessidade, generalidade e presunção implícita de risco de evasão fiscal.

Não é por isso evidente, “a necessidade de aceder a informação de contas bancárias de residentes fiscais em Portugal em termos equivalentes aos moldes internacionais”. Pelo contrário, defende o especialista, “as dúvidas adensam-se e as reservas são até mais fortes no plano estritamente nacional, pois apenas há um fundamento subjacente a esta necessidade: a luta contra a fraude e evasão fiscal. A questão do limiar mínimo de 50.000 euros (dólares) contradiz, até essa intenção, pois em qualquer caso pode haver fraude e evasão fiscal”, remata.

12

Qual é o ponto de situação desta legislação?

 

O diploma que impõe o acesso a saldos bancários para efeitos de combate à evasão fiscal e para troca de informação a nível internacional foi aprovado em Conselho de Ministros no dia 8 de setembro.

Uma das garantias que o governo que o governo definiu é a de que não haverá lugar a troca de informações com terceiros, privados ou públicos, nacionais ou estrangeiros, sobre os saldos dos residentes portuguesa fora do quadro previsto nos acordos internacionais.

Caberá ao Presidente da República, avaliar se a versão final do diploma resolveu os problemas de constitucionalidade levantados pela Comissão Nacional de Proteção de Dados.