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Novas regras? Mas porquê?

As novas regras para os bancos que entraram em vigor neste início de 2016 fazem parte dos planos para a União Bancária europeia, um projeto lançado no verão de 2012, quando se começou a solucionar a crise para a dívida europeia. Como veremos mais à frente, as mudanças que ocorreram agora dizem respeito ao segundo de três pilares.

A crise que começou no final da década passada demonstrou muito claramente que, apesar da existência de uma união monetária (a partilha do euro), a zona euro era, ainda, uma construção vulnerável. Em especial, mostrou-se que existia um elo entre Estados soberanos e os bancos do respetivo país que fazia com que a perceção de risco de um estivesse muito ligada à de outro.

Uma das razões para esse elo é que os bancos têm como um dos ativos principais nos seus balanços a dívida pública do respetivo país. Assim, como se geraram receios em torno das dívidas públicas de alguns países, os bancos ficaram fragilizados – o que alimenta um círculo vicioso em que os bancos perdem condições para emprestar à economia e em que se agravam as dificuldades económicas, contribuindo para subir os juros da dívida. A União Bancária quer acabar com este círculo vicioso.

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O primeiro pilar: a supervisão única

O primeiro pilar da União Bancária já está a funcionar desde novembro de 2014: o Mecanismo Único de Supervisão (MUS). Como o nome indica, este é um organismo que se tornou responsável pela supervisão da atividade dos bancos na zona euro, para garantir a estabilidade financeira.

O MUS (mais conhecido pela sigla anglo-saxónica SSM) é composto pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelos bancos centrais nacionais, que passam de responsáveis pela supervisão dos bancos do seu país para terem, agora, um papel de apoio. O BCE tem responsabilidade direta de supervisionar os bancos maiores (“sistémicos”) – que neste momento são 123 –, ao passo que, nos restantes, são os bancos centrais de cada país que têm responsabilidades de supervisão. O poder de decisão último, porém, é sempre do BCE.

O canal do BCE no YouTube tem um vídeo animado (em inglês) que explica como o SSM tem como um dos objetivos principais a harmonização das regras para todos os bancos da zona euro. É do SSM a responsabilidade última de analisar os balanços dos bancos e escrutinar as várias formas como os bancos operam no mercado, procurando assegurar a sua estabilidade.

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Agora, o segundo pilar – a Resolução (o terceiro só mais tarde)

Em Portugal, o termo resolução entrou no léxico quando houve o colapso do Banco Espírito Santo (BES), no verão de 2014. Trata-se de uma alternativa tanto à liquidação simples como à nacionalização dos bancos, que sobretudo entre 2008 e 2012 onerou os contribuintes com a fatura da reabilitação de bancos que entraram em dificuldades, um pouco por toda a Europa.

Com a resolução, procura-se extrair do banco em dificuldades a parte saudável, preservando o seu funcionamento, destacando-a dos ativos problemáticos que estejam na origem dos problemas. Já iremos conhecer em maior detalhe o que muda à entrada neste novo ano, mas importa sublinhar que a Diretiva da Recuperação e Resolução Bancária tem sido vertida na legislação nacional dos vários países – incluindo Portugal – desde 2012. Daí que a resolução do BES já tenha obedecido a alguns dos seus pressupostos.

O Mecanismo Único de Resolução (conhecido pela sigla SRM) tem como ponta de lança o Conselho Único de Resolução, um organismo que tem a responsabilidade de decidir, preparar e executar, em conjunto com as autoridades nacionais, situações de resolução de um banco – entrando em ação quando o BCE indicar que esse banco está “a falir ou tem grande probabilidade de falir”.

A resolução é o segundo pilar da União Bancária. Mas há um terceiro: um sistema de garantia de depósitos comum a toda a zona euro. Mas quanto a este pilar existem, ainda, muitas dúvidas sobre como e quando será possível chegar lá. A julgar pelas últimas declarações do ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, só mediante alterações no Tratado Europeu.

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Os bancos europeus passam a pagar todas as resoluções?

Não para já. O Conselho Único de Resolução terá sob a sua gestão o Fundo Único de Resolução, que será alimentado pelas contribuições periódicas dos bancos até atingir 1% dos montantes totais que existem na zona euro em depósitos garantidos (até 100 mil euros). Neste momento, esse valor corresponderia a cerca de 55 mil milhões de euros.

Mas apenas se chegará a esse valor em 2024 (estima-se). Assim, o fundo de resolução não passou, a 1 de janeiro, a ser responsável pleno pelos custos de uma resolução bancária num dado país. Até que se atinja essa fasquia dos 1% – que se estima ser em 2024, as contribuições dos bancos de cada país serão objeto de uma compartimentalização, pelo que mutualização plena só daqui a oito anos.

Sobretudo até que exista essa mutualização plena dos custos de resoluções bancárias na zona euro, os bancos terão de continuar a alimentar os seus Fundos de Resolução nacionais, como aquele que está a financiar a resolução do BES e a criação do Novo Banco – graças às contribuições dos bancos e ao empréstimo estatal ao Fundo de Resolução.

Além disso, sublinhe-se que sob a responsabilidade direta do Conselho Único de Resolução ficam apenas 145 grupos financeiros: os 123 sistémicos que são supervisionados diretamente pelo BCE mais 22 que, não o sendo, são considerados grupos com atividade transfronteiriça relevante.

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O que mudou, então, a 1 de janeiro? Duas palavras: "bail in".

A diretiva europeia já tem vindo a ser transposta para a lei nacional nos vários países, mas apenas a 1 de janeiro entrou em vigor a componente crucial do bail in, ou recapitalização interna.

O conceito de bail in nasceu em oposição ao bail out que marcou os anos da crise. A diferença é que, se nos bail out a ajuda financeira vinha de fora do banco (os contribuintes), com o bail in só em último caso é que isso acontecerá. Antes de entrar um cêntimo de dinheiros públicos, há uma hierarquização dos agentes expostos ao banco (stakeholders) que sofrem perdas para evitar ou, pelo menos, limitar esse recurso aos contribuintes.

É simples perceber o que muda. Para evitar males maiores, durante a crise as recapitalizações e resoluções de bancos foram feitas penalizando, apenas, os stakeholders acionistas e os detentores de dívida (no caso do BES protegeu-se, numa primeira fase, a dívida sénior). Os Depositantes estavam totalmente protegidos.

Dois exemplos. Em primeiro, nos planos de recapitalização do BCP e do BPI, por exemplo, os acionistas foram penalizados porque os bancos ficaram a pagar juros elevados pelos empréstimos estatais, causando uma erosão no valor das ações. Em segundo lugar, no caso do BES, acionistas e detentores de dívida subordinada ficaram no BES – o banco mau da resolução – e não viram os títulos passarem para o Novo Banco (análise mais aprofundada sobre o Novo Banco adiante).

No fundo da hierarquia estavam (e continuam a estar), os acionistas e os detentores de dívida subordinada emitida pelo banco, um género de títulos de dívida que é emitido com menos garantias de reembolso do que a chamada dívida sénior. Durante a crise, o dinheiro dos contribuintes entrava logo a seguir ao recurso à dívida subordinada e às ações e antes de se recorrer aos títulos de dívida sénior para absorver perdas.

A partir de agora, o bail in prevê que sejam afetados também esses detentores de dívida sénior e – muito importante – os depositantes com mais de 100 mil euros.

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Depósitos acima de 100 mil perdem automaticamente?

Os depósitos acima de 100 mil euros passam, como já vimos, a constar do conjunto de ativos que podem ser utilizados para absorver perdas no caso de uma resolução. Mas não é algo automático que um banco que seja alvo de uma resolução tenha de impor perdas aos depositantes (com mais de 100 mil euros).

Em primeiro lugar, é possível que o banco tenha outros ativos e passivos que permitam que não seja necessário, face à insuficiência de capital, chegar aos depósitos. Pode, por exemplo, ser suficiente recorrer aos acionistas e aos detentores de dívida subordinada e aos credores com títulos de dívida sénior (que antes estavam protegidos). Tudo depende da forma como estiver gizado o plano de recuperação que é preparado para cada instituição financeira.

Além disso, existe um grau de discricionariedade por parte da autoridade de resolução sobre esta matéria: é possível que, em determinadas circunstâncias, a autoridade de resolução decida proteger os depósitos, se estiverem em jogo possíveis consequências sistémicas.

Por outras palavras, mesmo com as novas regras, decidir se os depósitos (sempre, acima de 100 mil euros) são ou não utilizados na resolução de um banco é uma prerrogativa da autoridade de resolução competente – que pode ser o Conselho Único de Resolução ou a entidade nacional (o Banco de Portugal), mas mesmo aí é preciso uma aprovação do Conselho Único de Resolução.

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Dívida sénior era protegida? Então e o Novo Banco?

Começou logo em 2012 a ser transposta a legislação europeia que entrou, agora, totalmente em vigor. No entanto, apesar de numa primeira fase na resolução do BES se terem protegido os depósitos (mesmo os acima de 100 mil euros) e os detentores de dívida sénior, tudo mudou na última semana de 2015.

Os depositantes continuaram protegidos mas as necessidades de capital do Novo Banco obrigaram a novas medidas, que passaram pela controversa passagem de cinco linhas de obrigações seniores de novo para o BES, o banco mau, onde terão uma baixa probabilidade de serem reembolsadas.

Esses títulos, no valor de cerca de dois mil milhões de euros, tinham sido salvaguardados com a passagem para o Novo Banco, mas optou-se, cerca de ano e meio depois da resolução do BES, por um reajuste da operação – o que levará a que estes credores do BES/Novo Banco possam vir a ser penalizados apesar de as novas regras só terem entrado em vigor alguns dias depois, a 1 de janeiro. E, claro, apesar de a resolução ter ocorrido (ou, melhor, começado) em meados de 2014. É por esta razão que se acredita que existe, aqui, um grande potencial para litígio interposto por estes credores institucionais.

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Que consequências para os bancos (e para quem precisa deles)?

Numa situação de bail in, 8% do passivo total da instituição passa a ter de ser suportado por acionistas e outros credores. Só depois se recorre ao Fundo de Resolução, e mesmo aí o contributo para a resolução do banco não pode exceder os 5% do total do passivo (não esquecer, depósitos são passivo dos bancos).

A propósito, este limite dos 5% para o Fundo de Resolução é a justificação do ministro das Finanças para a participação limitada do Fundo de Resolução no Banif. Leia mais aqui.

O objetivo de todas estas regras é evitar ou minimizar a necessidade de recorrer a fundos públicos para lidar com problemas em bancos. Mas estas mudanças levam a consequências para a forma como os bancos se financiam – porque se anteriormente havia a perceção de que dívida sénior e depósitos (acima de 100 mil euros) eram protegidos, agora isso deixa de ser assim.

“Isto levará a uma dinâmica diferente entre os bancos e os seus acionistas, e poderá ter um impacto sobre a forma como os bancos obtêm financiamento”, escreve a consultora PwC num relatório de janeiro de 2014. Perante um maior risco de perdas, os investidores poderão pedir juros mais elevados para comprar dívida dos bancos.

Bancos que, por outro lado, estarão obrigados a fazer contribuições periódicas para o Fundo de Resolução que abatem nos lucros. Tudo isto limita a rentabilidade dos bancos – que já enfrenta vários desafios, nomeadamente em Portugal – e pode penalizar a atividade de concessão de crédito, sobretudo tendo em conta as exigências na zona euro no que diz respeito ao binómio capital vs risco.

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Sobre os depósitos. Alguns exemplos práticos

Será importante sublinhar, contudo, que sempre foi possível haver perdas em depósitos – quando se trata de liquidações de bancos. Antes de serem criados os esquemas da resolução bancária na Europa, o que poderia acontecer, em teoria, é que perante uma liquidação de um banco toda a gente perdia tudo e, depois, os depositantes poderiam ir reivindicar um determinado montante (atualmente 100 mil euros) junto do Fundo de Garantia de Depósitos.

A questão que é essencial compreender é que, durante a crise, a regra não foi a liquidação de bancos, mas sim os resgates. O que muda é a forma como esses resgates são feitos.

Aqui chegados, e correndo o risco de cansar o leitor, nunca é demais sublinhar que as alterações para os depósitos se refletem apenas nos depósitos acima de 100 mil euros. Abaixo desse valor, estão plenamente garantidos. E aproveitamos para sublinhar a importância de saber distinguir entre o que é e o que não é um depósito – algo que deverá estar claro na ficha de informação normalizada. Esclarecer qualquer dúvida junto do gestor de conta é muito importante.

Mas juntemos a esta discussão alguns exemplos que ajudam a perceber, na prática, como é que este limite dos 100 mil euros é calculado, partindo das regras do Fundo de Garantia de Depósitos nacional, onde não houve quaisquer alterações. Para ficar claro, as alterações nas regras agora anunciadas não se refletem nos depósitos porque o Fundo de Garantia de Depósitos atua numa situação de liquidação. Aqui, trata-se de usar depósitos não numa situação de liquidação mas de resolução, com recurso a dívida sénior e depósitos acima de 100 mil euros.

Ainda assim, será oportuno lembrar que, no plano do Fundo de Garantia de Depósitos, a garantia de 100 mil euros é por conta e por titular. O que é que isto significa? Eis alguns exemplos práticos:

Tenho duas contas em dois bancos diferentes, com 80 mil euros em cada conta. Estou acima do que está garantido?
Não. A garantia é prestada por titular e por banco. Ou seja, mesmo num cenário em que ambas as aplicações ficassem indisponíveis em simultâneo, tratando-se de duas contas em dois bancos diferentes a totalidade dos 160 mil euros seria assegurada.

E os juros?
Tanto o capital inicial como os juros relativos ao período em questão também são garantidos até à data em que o depósito ficou indisponível.

E quando as contas são conjuntas ou coletivas?
Quando se trata de contas coletivas, conjuntas ou solidárias e na ausência de disposição em contrário, os vários titulares assumem-se como tendo partes iguais. Vejamos uma situação em que o João e a Ana, marido e mulher, têm uma conta conjunta num banco com 50 mil euros à ordem e 200 mil euros a prazo. Se esses recursos ficarem indisponíveis o que acontece é que se calcula que cada um deles tem 125 mil euros em valor de depósitos nesse banco. Aí, cada um deles receberia 100 mil euros. Já no caso de um depósito de uma associação ao qual têm acesso vários membros, considera-se a entidade como um único depositante.

E se um de dois titulares tiver uma conta individual, à parte?
O Ricardo e a Helena partilham uma conta à ordem com 20 mil euros. Mas, em paralelo, a Helena tem uma conta poupança-reforma de 150 mil euros. Numa situação em que os fundos ficam indisponíveis, mais uma vez calcula-se o valor em depósitos de cada titular. No caso do Ricardo o valor é de 10 mil euros mas a Helena tem 160 mil euros. Isso significa que todo o capital do Ricardo está assegurado pelo fundo de garantia de depósitos. Já a Helena só receberá 100 mil euros.

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(Também) sobre os depósitos garantidos. Que exceções? E que exclusões?

Compreendido que os depósitos são garantidos até 100 mil euros por titular e por conta, vale a pena concluir este Explicador com algumas exceções.

Eis algumas das principais exceções que anulam o limite dos 100 mil euros durante o primeiro ano desde que entraram na conta – ou seja, protegendo os depósitos num caso de resolução mesmo que tenham valor superior:

  • Quando um particular tiver beneficiado de transações imobiliárias envolvendo prédios urbanos habitacionais privados. Em termos simples, imagine que vende uma casa por 200 mil euros e esse dinheiro é depositado na sua conta. Se dali a seis meses, por exemplo, o banco for alvo de uma resolução, o montante fica protegido na totalidade.
  • O mesmo se passa com pagamentos de prestações de seguros ou indemnizações resultantes da prática de um crime ou de condenação indevida.
  • Os depósitos com objetivos sociais também têm regras de proteção especiais.

Excluídos da garantia de depósitos estão os depósitos de institucionais, ou seja, agentes como instituições de créditos (bancos), empresas de investimento, empresas de seguros, etc. Exceções, aqui, vão para a proteção dos depósitos de fundos de pensões cujos associados sejam Pequenas e Médias Empresas (PME) ou autarquias locais.