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Porque é que os EUA atacaram a Síria?

Os Estados Unidos atacaram a base aérea de al-Shayrat, perto da cidade síria de Homs, porque acreditam que foi dali que partiram os aviões do regime de Bashar al-Assad que terão lançado um ataque com armas químicas sob a cidade de Khan Shaykhun na terça-feira, matando pelo menos 86 civis.

A acusação foi feita por Donald Trump (e não só) ao longo desta semana. Já na quinta-feira, o Presidente norte-americano colocara a hipótese de agir militarmente, de forma pontual e isolada, na Síria. Ao final do dia, momentos antes de jantar com o Presidente da China, Xi Jinping, anunciou o ataque à base aérea de al-Shayrat.

Nesse anúncio, que não passou dos três minutos, Donald Trump acusou “o ditador sírio” de lançar “um horrível ataque com armas químicas contra civis inocentes”. “Foi uma morte lenta e brutal para várias pessoas, até lindos bebés que foram cruelmente assassinados nestes ataques bárbaros”, disse o Presidente dos EUA.

Donald Trump defende que “não há dúvida de que a Síria usou armas químicas proibidas” e acredita que “é essencial para o interesse da segurança nacional dos EUA prevenir e dissuadir o uso de armas químicas letais”.

Numa outra conferência de imprensa, o secretário de Estado e chefe de diplomacia dos EUA, Rex Tillerson, disse que os EUA tiveram de agir porque “claramente a Rússia falhou na sua responsabilidade” de garantir a destruição e controlo sobre o arsenal químico sírio, que foi acordada em 2013, num compromisso onde esteve envolvido Barack Obama.

“Claramente a Rússia falhou na sua responsabilidade de cumprir o que foi acordado”, disse Rex Tillerson horas depois do ataque. O secretário de Estado dos EUA foi claro a apontar o dedo à Síria, onde até há pouco tempo, quando era empresário petrolífero, era recebido de braços abertos. “Ou a Rússia é cúmplice ou é simplesmente incompetente no cumprimento desse acordo.” Ainda assim, o chefe da diplomacia dos EUA disse que “não se deve, de qualquer modo, extrapolar que [os ataques] mudaram a nossa política ou postura em relação à Síria”.

No entanto, por mais que Rex Tillerson insista, parece evidente que os EUA acabaram de mudar de rumo ao atacarem, pela primeira vez desde que a guerra da Síria começou, posições leais ao regime de Bashar al-Assad.

Até por outra coisa que Rex Tillerson disse numa outra conferência de imprensa, horas antes: “O papel de Assad no futuro é incerto e com as ações que ele tem tomado, parece que não há espaço para ele governar o povo sírio”. Ora, por mais que Rex Tillerson diga uma e outra coisa no mesmo dia, uma coisa é certa: os EUA nunca tinham atacado o regime de Bashar al-Assad e isso terá repercussões.

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Quem tem responsabilidade pelo ataque químico de terça-feira?

O mais certo é que a culpa morra solteira neste caso.

Primeiro, os factos mais básicos: na terça-feira, morreram 86 pessoas na cidade de Khan Shaykhun depois de terem sido expostos ao gás sarin, uma substância neurotóxica que bloqueia as vias respiratórias. As imagens que surgiram desse ataque causaram indignação por todo o mundo, mesmo que este não tenha sido o primeiro ataque químico a acontecer desde março de 2011, quando começou a guerra na Síria.

Esses são os factos que não merecem discórdia. A partir daí, o caso muda de figura.

A dúvida é perceber precisamente de quem partiu o ataque desta terça-feira. Enquanto grande parte do Ocidente culpa diretamente o regime sírio, Damasco e os seus aliados (com especial atenção para a Rússia) insistem que a responsabilidade é dos rebeldes e “terroristas”.

Da parte dos EUA, insiste-se que o regime de Bashar al-Assad esteve por detrás do ataque. Donald Trump acusou “o ditador sírio” de lançar “um horrível ataque com armas químicas contra civis inocentes”. Também outros países falaram, apontando o dedo ao ditador sírio. É o caso do Reino Unido ou da Austrália, ambos envolvidos na coligação de combate ao autoproclamado Estado Islâmico. E também o Presidente do Conselho Europeu, o polaco Donald Tusk, foi claro na sua condenação do regime sírio.

Da parte da Síria, a refutação das acusações é total. A versão do regime sírio é a de que atacou os rebeldes em Khan Shaykhun, na província de Idlib — e que durante esses raides foram atingidos os armazéns onde os rebeldes armazenam gás sarin. Com o ataque, o gás ter-se-á espalhado pelo ar.

Ainda na véspera do ataque dos EUA, o vice-primeiro-ministro sírio, Walid al-Moallem, apontou para essa teoria e condenou a reação internacional a este incidente. “Este coro que foi lançado na arena internacional é composto por estados que são bem conhecidos por conspirarem contra a Síria”, disse o vice-primeiro-ministro sírio. “Reitero que o exército sírio nunca usou e nunca vai usar este tipo de armas, não só contra o nosso povo e as nossas crianças, mas até contra os terroristas que estão a matar o nosso povo e as nossas crianças e a atacar civis nas cidades com os seus bombardeamentos aleatórios.”

A Rússia afina pelo mesmo diapasão. Em comunicado, Vladimir Putin diz que os EUA justificaram a sua intervenção militar com “pretextos rebuscados”.

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Como é que a comunidade internacional reagiu ao ataque dos EUA?

Em grande parte, favoravelmente aos EUA.

As reações de apoio à decisão de Donald Trump não tardaram a chegar de vários países europeus. Um dos primeiros foi o Reino Unido que, em comunicado, fez saber que a primeira-ministra Theresa May “apoia totalmente o gesto dos EUA”. A lista continua com a Austrália, que disse que os EUA agiram de forma “calibrada, proporcional e dirigida”; Israel, que desejou que a medida “seja compreendida não só em Damasco, mas também em Teerão, Pyongyang e outros sítios”; e também França e Alemanha, que emitiram uma declaração conjunta. A partir do eixo franco-alemão, Angela Merkel e François Hollande acusaram o regime de Bashar al-Assad de ter usado armas químicas contra civis e disseram que o Presidente sírio tem a “plena responsabilidade” do ataque dos EUA.

O foco das condenações muda ao olhar para três países: Síria, China, Irão e Rússia.

A presidência da Síria reagiu num comunicado em disse que os EUA agiram de forma “imprudente e irresponsável” e que o ataque foi um ato de “cegueira política e militar”. “Atingir a base aérea de um país soberano é ultrajante e dá razão à Síria quando diz que a nova administração americana não mudou as políticas do país, que se caracterizam pela subjugação de estado e pessoas e a tentativa de mudar o mundo”, dizia ainda o documento.

Da parte da China, a situação não só é complicada como confrangedora. Momentos depois de ter anunciado o ataque militar contra a base aérea síria, Donald Trump sentou-se à mesa com o Presidente da China, Xi Jinping, que está nos EUA em visita oficial. A China, a par da Rússia, tem sido fundamental para o bloqueio de uma ação por parte do Conselho de Segurança da ONU na guerra síria.

Mas, talvez por Xi Jinping estar frente a frente com Donald Trump, e atendendo ao momento particularmente tenso entre os dois líderes, a China reagiu de forma oficiosa através do jornal Global Times, financiado por Pequim. Em editorial, aquele jornal escrevia que Donald Trump quis “marcar a sua autoridade”, mas que, ao fazê-lo, demonstrou “pressa e inconsistência”. Esse gesto, garante, deixa “uma marca profunda”.

O Irão, que auxilia as tropas sírias no conflito que se arrasta desde 2011, também reagiu. O porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano afirmou que o gesto dos EUA foi “uma ação unilateral e perigosa, destrutiva e [que] viola os princípios da lei internacional”.

E, claro, a Rússia, também aliada militar da Síria. Moscovo foi um dos primeiros governos a reagir, neste caso pelo porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov. “O presidente da Rússia encara os ataques aéreos dos EUA na Síria como um ato de agressão contra um Estado soberano que é uma violação da lei internacional sob um pretexto rebuscado”, disse o porta-voz de Vladimir Putin. Pouco depois, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, disse que “é lamentável que isto signifique um golpe adicional para as relações entre os EUA e a Rússia”.

A Rússia acabou por ter a reação mais forte, porque, além das palavras, tomou a decisão de convocar uma reunião com urgência no Conselho de Segurança da ONU, que aconteceu logo no mesmo dia, sexta-feira, às 16h30 (hora de Lisboa). E é para aí que, mais do que qualquer outra parte do globo, devemos olhar se quisermos acompanhar o que aí pode vir.

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Porque é que a reação da Rússia importa?

Porque a Rússia tem sido o garante de Bashar al-Assad, permitindo-lhe ganhar fôlego e território numa guerra que, até à entrada de Moscovo, lhe fugia das mãos.

Isso só aconteceu quando a Rússia entrou na guerra da Síria, dando apoio logístico e militar ao regime de Bashar al-Assad, maioritariamente em meios aéreos. Estes foram essenciais para o regime capturar cidades como Alepo — antes da guerra, a maior cidade da Síria e a sua capital económica — ou Palmyra — classificada pela UNESCO e com um valor simbólico forte.

Além disso, tem sido a Rússia, a par com a China, que tem bloqueado as resoluções do Conselho de Segurança da ONU de condenação contra o regime de Bashar al-Assad. Esta é uma fratura que se arrasta há praticamente tanto tempo quanto a guerra na Síria.

Será interessante perceber qual é o próximo passo da Rússia. Estará Vladimir Putin interessado em fincar o pé na Síria, ganhando ainda mais influência na região? Ou irá o Presidente da Rússia ceder em nome de uma aproximação anunciada — mas, talvez arruinada esta sexta-feira — com os EUA?

A postura da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, que esteve reunido de urgência na tarde de sexta-feira a pedido de Moscovo, será um ponto de partida para os próximos tempos.

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É verdade que Donald Trump mudou de posição em relação à Síria de Assad?

Sim, é verdade.

Apenas há pouco tempo, Donald Trump apontou para a possibilidade de atacar o regime sírio. Até recentemente, as únicas menções que o presidente Donald Trump fez em relação a uma eventual intervenção na Síria eram geralmente contra o Estado Islâmico — nunca contra Bashar al-Assad.

Olhemos para 2013, quando, depois de um ataque químico contra civis ter sido atribuído à Síria, os EUA de Barack Obama ponderaram — e depois recuaram — tomar uma ação militar contra a Síria. Nessa altura, Donald Trump opunha-se a uma ação militar norte-americana. “O que é que vamos ganhar por bombardear a Síria além de uma dívida maior e um possível conflito de longa duração? Obama precisa de aprovação do Congresso”, escreveu Donald Trump no Twitter a 29 de agosto de 2013. Nessa altura, a situação em causa era semelhante à atual em quase tudo. Mas o “quase” em falta é considerável — nessa altura, a Rússia ainda não tinha formado uma aliança militar com a Síria. Um facto que, apesar de significativo, não impediu Donald Trump de avançar neste 7 de abril de 2017.

Mas não é preciso recuar tanto quanto isso para perceber que Donald Trump mudou, efetivamente, de ideias em relação a Bashar al-Assad e à Síria. A 19 de outubro, no último debate presidencial dos EUA, Donald Trump apresentou algumas reservas quanto à possibilidade de uma remoção de Bashar al-Assad do poder. “Se alguma vez derrubarem Assad, por pior que ele seja, e ele é mau, pode acabar-se por ficar com alguém pior do que ele”, defendeu no último debate presidencial.

Porém, na última semana, essa postura alterou-se radicalmente. A razão, explicou Donald Trump, é precisamente o ataque químico de terça-feira que a maioria da comunidade internacional atribui ao regime sírio. Foi isso que o Presidente explicou numa conferência de imprensa ao lado do Rei Abdullah, da Jordânia, também ele um adversário de Bashar al-Assad na região do Médio Oriente.

“O ataque químico de ontem na Síria foi horrível, contra inocentes, incluindo mulheres, crianças pequenas e até bebés lindos”, disse Donald Trump. “Estes atos hediondos do regime de Assad não podem ser tolerados. Os EUA estão ao lado dos nossos aliados em todo o mundo na condenação deste e de todos os ataques horrendos.”

Tudo isto, levou o Presidente dos EUA a admitir diretamente: “A minha atitude em relação à Síria e a Assad mudou muito”.

É verdade que mudou — e de uma maneira crítica. Agora, Donald Trump dá razão aos seus críticos ao mesmo tempo que prova que eles estão errados. Afinal de contas, o presidente dos EUA deu agora uma prova de que é imprevisível — mas, ao contrário do que alguns lhe apontavam até aqui, não parece disposto a tudo para fazer um reset às relações diplomáticas com a Rússia.

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Os EUA declararam guerra à Síria?

Não.

Para declarar guerra a outro país, os EUA precisam de ter aprovação do Congresso. Não foi o caso. O que aconteceu nesta sexta-feira foi uma intervenção militar isolada, que pode ser acionada somente com autorização do presidente dos EUA, o commander in chief. Os ataques recorrentes de drones norte-americanos em países do Médio Oriente (com especial incidência na Síria, Iraque e Iémen) são a prova disso.

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Quais foram os estragos do bombardeamento dos EUA?

Os relatos diferem.

De acordo com a agência estatal síria, a Sana, o ataque norte-americano resultou na morte de nove civis, entre os quais quatro crianças. Estas mortes terão acontecido em aldeias vizinhas da base militar de al-Shayrat. Não há menções a vítimas militares.

Já o Observatório para os Direitos Humanos na Síria aponta para sete mortos, todos militares. Entre estes, estava um general. Não há menções a vítimas civis.

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Esta foi a primeira vez que houve ataques com armas químicas contra civis na Síria?

Não.

Em agosto de 2013, quando a guerra já passava a marca dos dois anos, e numa altura em que o regime sírio não contava oficialmente com o apoio da Rússia, foi lançado um ataque com gás sarin contra civis em Damasco.

A situação foi em tudo semelhante à vivida em Khan Shaykhun esta semana — um ataque químico foi levado a cabo contra civis indefesos. Segundo o Observatório para os Direitos Humanos na Síria, o número de mortos chegou a 502. Esta contagem está longe de ser consensual — tanto que os EUA apontam para 1.429 vítimas mortais. Foi a 21 de agosto de 2013.

Este ataque surgiu um ano depois de Barack Obama ter dito que um ataque químico seria um fator determinante para mudar a postura dos EUA em relação à Síria — ou seja, para levar a uma intervenção militar. “Nós temos sido muito claros para o regime de Assad, e também para outros agentes no terreno, que seria uma linha vermelha para nós vermos um monte de armas químicas a irem de um lado para o outro ou a serem utilizadas”, disse em agosto de 2012. “Isso mudaria o meu cálculo. Isso mudaria a minha equação.”

Mas não mudou. Em agosto de 2013, Barack Obama chegou a entrar em conversas com David Cameron, à altura primeiro-ministro britânico, para planear ataques aéreos contra alvos de Bashar al-Assad. A intervenção militar acabou por não acontecer, dando lugar a um acordo que envolveu os EUA de um lado e a Síria do outro. A Rússia também participou no acordo, apoiando a Rússia.

Na altura, ficou acordado que a Síria iria entregar e destruir todo o seu arsenal de armas químicas, sob a monitorização da Organização pela Proibição das Armas Químicas, um órgão das Nações Unidas. Tanto que, ao longo do ano de 2016, houve denúncias de ataques químicos na Síria, atribuídos tanto aos rebeldes como às forças do regime.