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O que é que vai ser referendado dia 16 de Abril?

As emendas à Constituição propostas pelo presidente Recep Erdogan visam, segundo o próprio, estabilizar a Turquia e limitar o domínio dos militares, que não são eleitos, nos organismos do governo. A oposição, por seu turno, considera que a Turquia caminha para uma ditadura, concentrando demasiado poder num só homem e dissolvendo a separação dos poderes.

Atualmente a Turquia é uma República e o centro decisório do país é o Parlamento. O primeiro-ministro — o líder do partido ou coligação em maioria na câmara de deputados — é nomeado pelo Presidente e aprovado no Parlamento por uma moção de confiança.

A alteração mais controversa proposta no texto que vai ser referendado é a mudança deste sistema: o poder executivo vai efetivamente passar dos deputados para o presidente, que poderá ser líder de um partido (agora tem que cortar ligações quando é eleito presidente), passará a nomear e afastar ministros, membros do Tribunal Constitucional, do organismo supervisiona todo o sistema judicial e altos cargos do Estado. Pode também emitir ordens executivas.

John Kayne, autor do livro “Vida e Morte da Democracia” (Edições 70), argumenta que quando um povo, através da ferramenta democrática do uso do voto, escolhe limitar a sua democracia estamos na presença de um “democídio”, o suicídio da democracia. Será a isto que estamos a assistir na Turquia?

18 artigos da Constituição turca que poderão vir a sofrer alterações caso o “Sim” vença dia 16 de abril. Quase todos convergem para solidificar o poder do presidente. Em resumo, eis o que vai mudar:

  • O posto de primeiro-ministro desaparece;
  • Os ministros passam a ser escolhidos pelo presidente;
  • O presidente torna-se a figura mais importante do ramo executivo do poder e pode emitir decretos de lei ou ordens executivas se o país estiver sob estado de emergência (como atualmente);
  • O presidente poderá manter as ligações e funções políticas no seu partido;
  • Eleições para o parlamento e para a presidência irão acontecer no mesmo dia, de cinco em cinco anos;
  • O parlamento deixará de poder “interpelar” o governo, um mecanismo que existe para questionar uma determinada lei ou política e que pode resultar numa moção de censura;
  • O presidente ganha imunidade penal;
  • O presidente escolhe a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional (que passam de 17 a 15) e também do Conselho Supremo de Juízes e Procuradores (que passa de 22 membros para 13).

O sumário é esse. Mas, aqui, os detalhes são importantes — e há argumentos convincentes dos dois lados, apesar de as opiniões publicadas pelos media internacionais serem, na sua maioria, contra a reforma. Este vídeo da EuroNews mostra as mudanças propostas pelo partido de Erdogan:

https://youtu.be/3sBjE5wbwDg

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O que dizem as sondagens?

A diáspora turca já começou a votar. As sondagens mostram o “Evet” (“Sim”, em turco) à frente do “Hayir” (“Não”) com 57.2% contra 43% por cento, mas os números divergem muito, dependendo do meio de comunicação onde são publicadas.

Esta estimativa é do jornal Daily Sabah, próximo do governo. Por contraste, Murat Gezici, diretor da empresa de sondagens como o nome da sua família, disse à agência Reuters que das 16 sondagens que a sua empresa conduziu desde janeiro, nenhuma mostra a vitória do “Sim”. Pelo contrário, o “Não” tem aparecido perto dos 53%.

Há 55,336,960 milhões de eleitores na Turquia que deverão depositar o seu voto em uma das 164,000 urnas disponíveis. Fora do país são 2,092,389 milhões de turcos que poderão votar em uma das 119 representações diplomáticas turcas espalhadas pelo mundo.

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O que se esconde nos detalhes destas mudanças?

A Aljazeera construiu uma espécie de organigrama dos vários ramos do Estado que poderão ser afetados, onde ficam claras as diferenças legais e institucionais entre o sistema hoje em vigor e aquele que se pode seguir a um “Sim”.

Como as coisas estão hoje, o poder executivo é divido entre presidente, primeiro-ministro e ministros, que são nomeados pelo presidente por indicação do primeiro-ministro. A ação legislativa tem lugar no Parlamento, cujos deputados são eleitos num sistema de representação proporcional, como em Portugal. Atualmente tem 550 lugares e contém representantes de 81 províncias turcas. Poderá passar a ter 600. A idade mínima para se ser deputado passa de 25 para 18 anos.

Mas as mudanças propostas, dizem os críticos, vão afetar a divisão de poderes na Turquia. O presidente torna-se chefe de Estado e chefe de Governo, com poder para nomear e afastar ministros e vice-presidente, uma figura que agora não existe. Deixará assim de haver um corpo ministerial que tenha que responder perante o parlamento, que perde também o seu papel “de vigiar” as ações dos ministros.

Segundo as “novas” emendas, o direito “à interpelação” é abolido. Hoje, os deputados podem exigir a explicação de uma determinada decisão de um ministro ou do presidente, e até avançar com moções de censura. Essa instância desaparece.

Outra coisa que pode passar a ser possível é que o candidato a presidente também seja o líder de um partido, o que significa que será o potencial presidente a escolher os candidatos a deputados nas eleições parlamentares, o que pode levar à erosão da separação de poderes, já que a agenda dos deputados é ideologicamente próxima da do presidente.

Como as eleições para o Parlamento e para o cargo de presidente vão passar a acontecer no mesmo dia — e os mandatos terão a mesma duração de cinco anos — é muito possível que a “cor” do presidente e a do Parlamento acabe por coincidir.

A influência do Presidente no ramo judicial também pode aumentar com um eventual “Evet”: a proposta visa abolir os dois tribunais militares que existem e diminuir o número de juízes. No Tribunal Constitucional o presidente escolherá 12 juízes e o parlamento apenas 3. Já no organismo que supervisiona juízes e procuradores, o presidente irá nomear 4 membros, e os deputados 7. Como o Ministro da Justiça e o seu vice são membros automáticos do conselho de supervisão, na prática o presidente escolherá 6 dos 13 nomes.

No final de contas, 18 membros das duas instâncias judiciais mais altas da nação serão escolhidos pelo presidente, enquanto o parlamento poderá apenas escolher 10.

A consolidação da “estabilidade” da Turquia passa também, de acordo com os deputados que aprovaram esta revisão, por estabelecer um processo de deposição do presidente algo que até agora é impossível. Mas embora abram uma janela, acabam por fechar imediatamente a porta. Senão, vejamos:

Para se iniciar o processo de impeachment de um presidente serão necessárias apenas 301 assinaturas dos deputados, uma maioria simples; depois disso, o parlamento pode estabelecer uma comissão de inquérito se 360 deputados votarem (por voto secreto) nesse sentido.

Se essa comissão decidir enviar o processo para o Supremo, o presidente só pode ser julgado depois uma nova votação ocorrer — e uma que resulte em mais de 400 votos a favor. Isto é praticamente impossível se o partido dominante e o partido do presidente forem o mesmo. Ou seja, na teoria é possível, na prática, quase impossível.

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Quais os principais argumentos do "Sim"?

O que está em causa, argumentam o presidente Erdogan, o partido maioritário Desenvolvimento e Justiça (AKP), e a liderança dos ultra-nacionalistas do MHP (nem todos os membros do partido estão a favor) é a “estabilização” da Turquia.

Ambos dizem que o regresso a um parlamento instável e a alianças voláteis que dominaram a vida política do país no século XX colocaria o povo turco em risco, numa altura em que o país está a tentar lidar com ataques terroristas, tanto do Daesh, como dos curdos que lutam pela sua auto-determinação. No plano interno há ainda a “ameaça” dos “rebeldes” — ou “terroristas” nas palavras do presidente — que o governo culpa de orquestrarem a tentativa falhada de golpe de Estado em julho de 2016.

Para os que apoiam esta reforma, a burocracia de Estado está a “atrofiar” o país e a impedir o seu pleno desenvolvimento, uma vez que é muito mais difícil passar leis num parlamento que albergue dezenas de nuances ideológicas diferentes.

Um outro argumento é que esta reforma é necessária para “limpar” o controlo que os militares têm tido sobre um governo que deve ser civil. Apesar de se auto-proclamarem defensores do Estado laico imposto por Ataturk, os militares também conduziram as suas purgas e são vistos como uma elite que não só é uma minoria, como nunca chegou ao poder através de eleições, e sim através de golpes de Estado.

Ibrahim Karagul, um jornalista especializado em análise política interna turca, e que apoia o “Sim” no referendo, tem escrito sobre esta perceção de que a Turquia se esteja a afastar da democracia. Nos seus artigos de opinião para o jornal Yeni Safak, Karagul diz que a oposição — incluindo a externa — tem medo que a Turquia se assuma como uma potência mundial.

“A Turquia já não está naquele ponto em que só se preocupa com as suas questões internas, que apenas luta contra os ataques de organizações com raízes fora do país, que é fácil de dominar, que se deixa criticar como deixou durante um século pelas suas escolhas. Agora vamos começar a jogar o nosso jogo”, escreveu o analista.

Os “que dizem não” estão preocupados que a Turquia se torne “um país exemplar”, com “uma linguagem política que possa ecoar por toda a geografia muçulmana até às margens do Atlântico e do Pacífico” e que “esta mudança modifique os mapas de poder a que estão habituados”, defende ainda.

Também Mehmet Ucum, o conselheiro principal nos assuntos judiciais do presidente Erdogan, disse à Al Jazeera que as preocupações como “o fim do balanço de poderes” são “completamente infundadas”. Para Ucum, o mais importante é que seja o povo a escolher os representantes de todos os ramos do governo, porque aí reside “a verdadeira democracia”. Admitindo que isso pode levar a “abusos de poder”, Ucum considera, ainda assim, “que esse cenário seria um reflexo da vontade do povo” até porque, se isso se tornar o problema e as pessoas estiverem descontentes, “é sempre possível pedir novas eleições”.

Quanto ao controlo dos tribunais por homens escolhidos por Erdogan, Ucum diz que a inclusão de uma “cláusula de imparcialidade” na Constituição irá evitar que os juízes sigam linhas ideológicas e “tornará o sistema judicial mais forte”. O responsável acrescenta ainda que, sob as emendas propostas pelo AKP, os juízes e membros dos organismos que os supervisionam serão eleitos por alguém também eleito e não pelo exército, “o que é uma prática fascista”.

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E os argumentos de quem se opõe às mudanças?

Mais do que dois estilos de vida diferentes — um urbano e um rural — ou duas gerações diferentes, a divisão que aqui está em causa é a diferença entre o que é a Turquia. Um estado onde a religião é apenas uma parte da vida pública, ou um outro fortemente marcado pela intervenção da religião islâmica nas decisões do Estado.

Teznan Gumus, especialista nas experiências de democratização no Médio Oriente da Universidade de Deakin, na Austrália, disse ao Observador que este referendo é “um claro retrocesso no processo democrático na Turquia”, porque “será possível ao presidente continuar como líder do seu partido e escolher os ministros, além de que poderá escolher pessoas de fora do parlamento, sem que os eleitores ou a oposição tenham como vetar os nomes. Resumindo, o parlamento será uma casa legislativa apenas em teoria, porque as leis serão discutidas no parlamento mas apenas o presidente as pode aprovar. Se não estiver contente com as leis do parlamento, ele mesmo pode escrevê-las e aprová-las”.

https://twitter.com/5abiBaba/status/849921935983226880

Os críticos de Erdogan dizem que o presidente está a tentar criar um país à sua imagem, uma espécie de “one-man show”, onde nada se possa decidir sem o seu aval.

Chamando a atenção para o facto de que as democracias também servem para eleger autocratas, Gumus diz que, apesar de continuarem a existir eleições de cinco em cinco anos, a atmosfera pós-referendo pode não ser das mais livres. “Um parlamento sem grandes poderes, a presidência com mandado constitucional para formar governo, influenciar a legislatura, controlar as instituições judiciais, decretar estados de emergência e convocar novas eleições… nada disto contribui para o aprofundamento da democracia”.

Yüksel Sezgin, o diretor do Programa de Estudos do Médio Oriente e professor de Ciência Política da Universidade de Washington, num artigo para o Washington Post, considera que estas mudanças aproximam muito a Turquia de um “Sultanato”.

“O regime de um-homem-só de Erdogan vai aproximar-me muito daquilo a que só posso chamar de ‘sultanato’, sem precedentes em lado nenhum no mundo democrático. O poder estaria fortemente concentrado nas mãos do presidente, praticamente sem mecanismos de escrutínio. Há turcos preocupados com a possibilidade de o presidente nomear membros da sua família para vice-presidentes ou até para sucessores, escreveu o professor.

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A oposição está mesmo a ser impedida de fazer campanha?

Não é unânime, mas há vários relatos que mostram as dificuldades de fazer campanha por parte de quem se bate por um voto que impeça estas mudanças.

A situação piorou bastante depois do golpe de Estado falhado do verão passado. A Amnistia Internacional estima que, desde que Erdogan começou a “limpeza” de alegados “apoiantes” do golpe de Estado de julho, cerca de 45.000 funcionários públicos perderam os seus empregos e mais de 15.000 estão presos.

Segundo o próprio governo, cerca de 9.000 militares terão participado no golpe de Estado falhado, e todos os que foram apanhados, ou já foram julgados, ou estão a aguardar julgamento. No total, cerca de 1.5% do serviço público turco foi afetado pelas medidas punitivas de Erdogan. Hoje a Turquia é o país do mundo que mantém mais jornalistas presos, são 231. O governo também já fechou 160 meios de comunicação social. Mas há números muito mais assustadores.

Num artigo para o diário britânico The Guardian, Can Dundar, ex-diretor do jornal mais antigo da Turquia, o Cumhuriyet, denuncia alguns incidentes que aconteceram recentemente no país. Dundar fugiu do país, com medo de ser preso como os seus colegas. Foi o que aconteceu a Murat Sabuncu, que tomou o seu lugar como diretor, e a outros dez jornalistas, que ainda não conhecem as acusações e estão presos há mais de cem dias.

“Ele quer remover qualquer esperança de que a Turquia se torne uma democracia secular plena, e, em vez disso, instaurar uma ditadura baseada na religião. Um voto pelo ‘Não’ poderia ainda limitar-lhe um pouco os poderes, mas um ‘Sim’ resultaria no nascimento de um outro regime ‘putinesco'”, escreveu o jornalista.

Os meios de comunicação que ainda restam, e não são completamente alinhados com o governo, estão a passar dificuldades: muitos jornalistas que não foram presos, foram despedidos, e é difícil conduzir uma cobertura imparcial quando o governo associa todos os que pensam votar “Não” a potenciais terroristas, ou os acusa de estarem contra o ressurgimento da Turquia como a grande nação que está destinada a ser.

“A campanha do ‘Não’ praticamente não existe. Os posters do ‘Não’ são destruídos e quem tenta fazer campanha na rua é tratado com violência. O presidente utiliza os meios do governo para fazer campanha, usa todos os 20 canais disponíveis, redes sociais, tudo. Não há discussão pública sobre os detalhes do governo. A Turquia vai votar em ou contra Erdogan. É um político formidável com um nível de apoio perto dos 40% aconteça o que acontecer. Resta saber se esta batalha lhe dará os 10-15% para o levar a ultrapassar os 50%”, diz ao Observador Yoruk Isik, professor de Política Internacional na Universidade de Helsínquia, turco, que voltou ao seu país para acompanhar as eleições.

Segundo as contas do jornal Independent, o AKP de Erdogan garantiu 4,113 minutos de antena nas televisões desde que começou a campanha para o referendo (no início de fevereiro, pouco tempo depois de as emendas terem sido aprovadas), enquanto o maior partido da oposição, o Partido Republicano do Povo (CHP) só conseguiu 216 minutos.

O partido curdo, o Partido Democrático do Povo (HDP) teve apenas um minuto. Doze dos deputados que representam os curdos estão presos desde o golpe de julho. Selahattin Demirtaş, o ex-líder, ainda não foi julgado e a número dois partido, Figen Yüksekdağ, foi obrigada a abandonar o assento de deputada por ter ido a um funeral de um militante anti-governo.

Além dos relatos bizarros sobre as manobras governamentais para impedir a palavra “Não” nas ruas, nas conversas e nos anúncios, também há os que falam de comícios que ficaram de repente sem luz e de intimidação constante — e até violência — de quem anda a distribuir panfletos contra as mudanças propostas.

O primeiro-ministro, Binali Yıldırım disse que só os terroristas estão contra as mudanças: “Se os terroristas andam em coro a defender um voto no ‘Não’ então isso devia chamar à atenção do nosso país, no nosso povo, dos nossos cidadãos, porque os meus cidadãos não estarão do mesmo lado dos terroristas”. Ozan Erdem, um líder local do AKP, foi forçado a abandonar o partido quando disse que o país poderia estar às portas de uma guerra civil caso o “Não” vencesse dia 16.

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De que forma pode o resultado afetar a relação da Turquia com a UE?

Ser membro da União Europeia já foi uma das grandes lutas de Recep Erdogan. No início do novo milénio, a Turquia era vista como um aliado estável num Médio Oriente dominado por regimes autocráticos. Em 2019 fará 20 anos desde que a Turquia enviou à Europa um pedido de acesso ao bloco, a maioria deles dominados pela presença de Erdogan.

A Europa (e a NATO) são alianças vitais para a Turquia, um país que tem sido fustigado pelos ataques do Daesh e pelos separatistas curdos. Além disso, a Europa é de longe o principal parceiro económico da Turquia, tanto em importações como em exportações. Já a Turquia é o 4º mercado para as exportações europeias e o 5º na lista dos países fornecedores.

Mas as relações entre a Turquia e a Europa já não são o que um dia foram — ou o que um dia houve esperança que pudessem vir a ser. É um país fundamentalmente diferente, principalmente na área das liberdades civis e religiosas, que não entende muitos dos posicionamentos europeus — que considera hipócritas — ou a sua burocracia — que utiliza como uma desculpa para a não libertação de fundos prometidos, por exemplo, em troca do acordo firmado em março para que a Turquia impedisse os refugiados que chegam ao país de continuarem o seu caminho até à Europa.

O momento politicamente vulnerável que a Europa atravessa faz com que Erdogan se sinta com confiança suficiente para criticar o bloco. Se os turcos “abrirem as portas” aos refugiados, de quem o eleitorado europeu parece ter cada vez mais medo, o resultado seria uma ainda maior pressão sobre os governos europeus, que já estão sujeitos àquela dos movimentos populistas abertamente anti-imigração, como a Frente Nacional em França ou o Partido da Liberdade na Holanda.

O processo de acesso à UE ainda não morreu, mas está nos cuidados paliativos. A situação piorou recentemente, quando alguns ministros turcos foram impedidos de fazer campanha pelo “Sim” no referendo junto das vastas comunidades de emigrantes turcos concentradas nas principais cidades da Áustria, Alemanha e Holanda. Erdogan não poupou nas palavras e acusou a Europa de ser contra o Islão e de estar a voltar “às práticas nazis”, uma ofensa imperdoável principalmente na Alemanha.

A esperança de alguns analistas, como Marc Pierini, do instituto Carnegie Europa, é que um voto pelo “Não”, ou uma vitória curta do “Sim” possam de alguma forma amenizar a espiral combativa de Erdogan. Mas nada é fácil de prever atualmente. “No plano internacional, Ancara pode continuar tentada a manter este discurso belicoso com os seus maiores parceiros sem muita atenção aos problemas económicos que isso possa trazer. No plano interno, embora o AKP veja a sua narrativa nacionalista e anti-ingerência como uma arma, não é certo que uma viragem para o conservadorismo religioso agrade a um país tão resiliente, tão multicultural”, escreveu recentemente o investigador.

A suspensão formal do processo de acesso ainda não está em cima da mesa, mas tudo dependerá do resultado do referendo e da posição que Erdogan adotar a seguir. A recente tirada de Erdogan em relação ao regresso da pena de morte, por exemplo, acabaria para sempre com as aspirações do país de algum dia vir a fazer parte do bloco.

Erdogan vai restaurar pena de morte se vencer referendo constitucional

Mas o centro dessa decisão pode nem ser Bruxelas. O próprio Erdogan já disse, em março, que, depois do referendo, “todos os laços políticos e administrativos com a Europa serão reanalisados”, incluindo o acordo com a Europa para impedir a entrada de imigrantes.

Dois dias depois, o presidente disse que poderia vir a oferecer aos cidadãos a possibilidade de decidirem, num referendo, se as negociações de acesso à UE deveriam continuar.

As ligações entre a Turquia e a Europa são vitais e antigas, mas a crispação que atualmente se verifica vai exigir um enorme esforço diplomático para se resolver. Uma união aduaneira mais proveitosa e a continuidade do programa que impede os refugiados de entrarem na Europa podem ser, para já, os únicos dois pilares de sustentação desta relação.

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Quais serão as principais consequências para o equilíbrio geoestratégico mundial?

A Turquia tem assumido um papel cada vez mais importante no plano internacional, quer pelo crescimento da sua economia e das ligações comerciais que mantém com a Europa, quer pelo seu posicionamento geográfico, entre o mundo árabe e o ocidente.

O facto de ter um dos exércitos mais profissionais da NATO, e de ser um aliado dos Estados Unidos, por exemplo, na guerra contra o regime de Bashar al-Assad na Síria, torna a Turquia uma espécie de extensão da Europa, mas alguns analistas temem que estas escaramuças aproximem Erdogan de Putin. Dois homens que dominam as vidas políticas dos seus países e consideram que, tanto a Europa como os Estados Unidos, por vezes os menosprezam e são demasiado rápidos a oferecer soluções para os seus problemas na área dos “direitos humanos” quando nem sempre resolveram os seus.

Este referendo não muda, diretamente, a política externa da Turquia, mas pode insuflar o ego do seu presidente até ao ponto em que Erdogan comece a achar que não precisa de ninguém. Mas, como analisa o Instituto Internacional de Estudos do Médio Oriente com sede em Ljubljana, na Eslovénia, a Turquia não mantém boas relações com quase nenhum dos seus vizinhos (Iraque, Irão, Síria, ou mesmo a Grécia por causa da questão do Chipre). Apesar das tentativas de normalização de relações por parte de Erdogan, as coisas também não estão bem com a Rússia, que, depois do fim da guerra fria, limitou bastante o contacto da Turquia com as minorias turca e muçulmanas da Ásia Central e região do Cáucaso.

A Turquia tentou então uma aproximação ao sul: Tunísia, Egito, Líbia e Síria, todos envolvidos numa Primavera Árabe em que a Turquia podia ter sido um exemplo, um farol, um mapa para a progressão democrática. Mas isso não aconteceu. A suposta primavera rapidamente se tornou fria como o inverno e, além da Tunísia, mais nenhum país encontrou ferramentas para a instauração de um regime mais aberto. Guerras terríveis sucederam-se na Líbia e também na Síria, onde a Turquia quer combater o regime de al-Assad, mas ao mesmo tempo não quer dar força à milícia curda, que exige um território próprio na Turquia e que também está contra al-Assad. Esta luta comprou outras, nomeadamente com a Rússia, que tem na Síria e no Irão aliados fortes nessa região.

“Há 15 anos a Turquia começou uma mudança sem retrocesso possível. O génio saiu do bule, não vai voltar lá para dentro. Independentemente dos resultados de domingo, os tempos de mudança vão continuar. Com um dos maiores exércitos da NATO, ou mesmo o mais importante da aliança no Mediterrâneo oriental, e como país que detém dívida de vários países europeus, creio que a agudização do conflito verbal com os parceiros europeus pode ter consequências, tanto para a Turquia, como para todos os países que mantêm relações com o país”, disse ainda Yoruk Isik.

É nesta complexa tapeçaria regional que a Turquia vai a referendo, na esperança de que, primeiro, possa resolver os problemas internos.

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Como é que se chegou aqui?

A “singularidade” turca num Médio Oriente mais fechado, mais tradicionalista, tem sido sustentada por um sistema parlamentar e pela efetiva separação entre a religião e os vários organismos do Estado. Mas esta história tem sido escrita a demasiadas mãos e a tónica secularista nunca agradou a todos. É uma história que começa com o fim da Primeira Guerra Mundial: o império Otomano desfaz-se e Mustafa Kemal Ataturk torna-se presidente do país, depois de ter liderado a revolução que impediu que os Aliados dividissem a Turquia em pedaços governáveis por cada um deles.

Inspirado pelos modelos de governo da Europa, Kemal Ataturk transformou a Turquia numa República e instituiu um parlamento. A religião muçulmana deixou de merecer menção na Constituição de 1924, aprovada um ano depois da instituição da República. Durante os anos 20 e 30, uma série de reformas completamente radicais para a região — e para a época — devastaram a maioria dos resquícios do tradicionalismo islâmico: acabaram os califados, a lei Sharia, até o alfabeto turco foi adaptado ao Latim.

Na Turquia de Ataturk as mulheres tinham mais direitos do que em grande parte da Europa. Mas a doutrina de Kemal Ataturk, ou Kemalismo, não deixou de ser também uma imposição autoritária de uma série de diretrizes ideológicas que tiveram origem numa elite militar e académica — e que deixavam de lado as tradições de mais de metade da população turca.

Como o sistema kemalista liberalizou a emergência de vários partidos, eventualmente aqueles que tinham sido oprimidos pela revolução “de cima para baixo” de Ataturk, ou seja, o povo (mais conservador, mas maioritário), acabou por chegar ao poder que lhe foi negado durante muitos anos.

Simultaneamente, o crescimento e a modernização da economia criaram as condições ideais ao nascimento de uma burguesia que, apesar de ter conseguido algum conforto económico, não abandonou os seus valores tradicionais, e continuava a ver as elites burocráticas, académicas e institucionais como opressores. É esta, aí como hoje, a base de poder do partido de Erdogan, uma base que cresce à medida que mais pessoas começam a sentir que podem fazer parte da maioria que governa.

Os sucessivos golpes de Estado

Em 1950, a oposição à modernização imposta por Ataturk atinge o auge e o Partido Democrata, de Celâl Bayar, coloca um fim ao domínio do Partido Republicano, que estava há 30 anos no poder. A religião voltou a assumir um papel central na vida da população: centenas de mesquitas reabriram, a chamada para oração voltou a ser feita em árabe, as escolas voltaram a incluir ensinamentos islâmicos nos seus currículos e o serviço militar foi encurtado.

As tensões eram óbvias e o governo impôs a lei marcial para “controlar” os secularistas. Nesse mesmo ano, a 27 de maio, o presidente, o primeiro-ministro e os membros do gabinete de ministros foram presos. Eram os militares de Ataturk que voltavam ao poder, onde permaneceriam por cinco anos, tentando de novo apagar a pegada árabe da história do país.

O general Cemal Gursel sobe ao poder e a era militar dura até 1965.

Os anos 60 e 70 foram marcados pela instabilidade e pela violência que se espalhou por todo o país. A recessão económica trouxe milhares de pessoas para a rua, as greves gerais sucediam-se e sucediam-se também as mortes. Os estudantes formaram grupos de extrema-esquerda, alguns inspirados pelas guerrilhas da América do Sul, que lutavam em autênticas batalhas campais, contra os islamitas.

O primeiro-ministro Süleyman Demirel, que tinha chegado ao poder em 1965 com o seu Partido da Justiça, moderadamente conservador, apoiado numa coligação de outras direitas rivais entre si, deixa de conseguir fazer passar leis num parlamento retalhado. No primeiro ano da década, a Turquia estava num caos perto da guerra civil. Voltam os militares para “repor a ordem”.

Em 1971, em vez de enviar os tanques, os militares entregaram um “memorando” ao governo que no fundo foi um ultimato, que obrigava o executivo a pôr termo à violência e a formar “um governo credível”, que pudesse neutralizar a anarquia que reinava nas ruas. Os ideais seculares de Ataturk deveriam ser repostos, a religião islâmica voltaria para a gaveta ou para a intimidade de cada um.

O primeiro-ministro, sabendo que a fragmentação do parlamento não lhe permitiria um governo estável, demitiu-se. A instabilidade continuou. A Turquia teve 11 primeiros-ministros durante a década de 70. Milhares de pessoas foram assassinadas pelas duas fações envolvidas na luta fratricida. Em Setembro de 1980, os militares anunciaram na televisão estatal que iriam dissolver o governo.

A lei marcial foi imposta. Estes anos foram mais calmos, o desemprego diminuiu e várias empresas foram privatizadas, mas as disparidades sociais continuavam. Esta “estabilização” também teve um preço pago em vidas. Os militares prenderam centenas de milhares de pessoas e torturaram centenas. A segunda constituição da República da Turquia, que reforçava o estatuto das forças armadas e o compromisso do governo com o secularismo foi aprovada em 1982.

As eleições de 1995 resultaram, pela primeira vez, na vitória de um partido claramente islâmico, o Partido do Bem-Estar, que governou em coligação com outros partidos de inspiração tradicionalista. Os 150 deputados do partido não tiveram, contudo, muito tempo para mostrar serviço em nome da maioria que representavam.

Em 1997, numa espécie de “golpe pós-moderno”, os militares enviaram algumas “recomendações” ao primeiro-ministro Necmettin Erbakan, entre elas a de instituir oito anos de ensino estatal obrigatório para evitar que as crianças fossem inscritas em escolas religiosas e a proibição do uso do véu nas universidades e departamentos públicos. Erbakan demite-se e um ano mais tarde o seu partido é banido por “ir contra a Constituição turca que pressupõe a aceitação de princípios seculares”.

Recep Tayyip Erdogan era membro desse partido. Educado numa época em que a religião era utilizada como arma contra o comunismo que se espalhava a Leste, Erdogan reteve um ódio à rebeldia e à insurreição que até hoje o acompanha. A sua família era parte da maioria que nunca governou, até ele chegar. O seu Partido do Desenvolvimento e da Justiça é um herdeiro direto de todos os outros criados e banidos em nome de um secularismo que mais de metade do país não subscreve.

Depois de ter sido Presidente da Câmara Municipal de Istambul, Erdogan chega a primeiro-ministro em 2002, um ano depois da formação do AKP. Exerceu durante 11 anos o cargo antes de ter sido eleito presidente em agosto de 2014. Há muito que se conhece em Erdogan a ambição de instaurar um regime presidencial, e nunca ninguém supôs que um homem tão influente e tão carismático como ele fosse abdicar do poder executivo que tinha como primeiro-ministro quando chegasse ao cargo de presidente.

Em 2010 o AKP atira as sementes da remodelação que vai a votos no domingo. Depois de quatro anos a tentar, o partido de Erdogan finalmente conseguiu reunir votos necessários para levar as suas (primeiras) propostas de reforma constitucional a referendo. Numa tentativa de aproximação à Europa, as novas emendas estabeleceram mais liberdades civis, como o direito ao contrato coletivo e à greve, mas também um controlo mais apertado do sistema judicial, cuja maioria dos membros passaram a ser escolhidos pelo presidente e pelo parlamento.

Dia 21 de janeiro de 2016, depois de desacatos que acabaram em violência, o parlamento turco aprovou as 18 emendas constitucionais que serão agora levadas a votos.

https://www.youtube.com/watch?v=QV9bhsykXnU

A maioria dos observadores internacionais concorda que o risco de fraude eleitoral é baixo na Turquia, apesar dos tumultos que a sua democracia sempre sofreu. Mas há formas de controlo que não passam por comprar votos. A campanha omnipresente do governo pelo “Sim”, em todas as televisões e em todas as principais praças do país, contrasta com os avisos das várias organizações não-governamentais que alertam para as mordaças que o regime tem imposto, tanto a jornalistas, como aos membros de oposição.

No domingo a história conhecerá um novo capítulo.