Tirando uma ou outra coisa (a história do pessimismo e da crítica), o discurso de Cavaco ontem, em Lamego, foi um discurso certo. Não parece, por exemplo, que as exigências que ele apontou para o próximo Governo, se desviem um milímetro do estritamente necessário. O que não impediu, é claro, o PS de protestar energicamente. Ferro Rodrigues lá voltou com a estafada fórmula do discurso “totalmente colado àquilo que é a narrativa da actual coligação de direita sobre a crise, sobre a evolução do pós-crise e sobre a perspectiva futura”.

Não é preciso discutir a crítica à tal “narrativa” sobre a crise. O PS queria muito ouvir uma narrativa diferente, onde aparecesse virginal e doce, sem responsabilidade nenhuma na dita. É humano, mas, dentro dos limites de um mínimo de racionalidade, completamente impossível. Nenhuma lei, no entanto, impede Ferro Rodrigues de sonhar alto. Em contrapartida, quando discorda do que Cavaco disse sobre a evolução do pós-crise e sobre a perspectiva futura, há algo de inquietante, se levarmos Ferro Rodrigues a sério. Porque isso só pode significar que o PS discorda de que o próximo Governo se deva preocupar com o equilíbrio das contas do Estado, com o controle das contas do Estado, com a competitividade da economia face ao exterior, e com um nível de carga fiscal em linha com os nossos competidores. Porque foi isso exactamente o que o Presidente disse na matéria.

É verosímil que o PS pense isso? Que queira mandar às urtigas o equilíbrio das contas do Estado? Que seja apologista do seu descontrole absoluto? Pelo menos em parte, e independentemente de uma história sua não assim tão longínqua, não é. Mas certamente que o PS se sente obrigado a dizer que discorda do que Cavaco diz. Porque precisa de viver sob um regime de dupla verdade. Por um lado, sabe de cor e salteado que as coisas são como Cavaco diz que são, e às vezes di-lo com muito cuidadinho. Por outro lado, sabe também que se não dissesse igualmente outra coisa que contradisesse essa – um lugar-comum qualquer com um cheirinho “keynesiano”, ou uma tirada lírica inspirada por um discurso de Sampaio da Nóvoa – tornaria o seu discurso na prática indistinguível do do Governo. E daí a perder as eleições o passo era pequenito.

Qualquer lugar é um bom palco para o exercício de fazer conviver os dois discursos. Ou repartindo-os por pessoas distintas ou concentrando-os numa só pessoa: António Costa, por exemplo, ou Ferro Rodrigues. Tomemos o caso do Syriza. Já se viram opiniões diametralmente contrárias do PS na matéria: é um bom sinal, é um mau sinal. Ou o do FMI: seguir-se-ão políticas contrárias às do FMI, mas adoptando políticas do FMI. Portugal está melhor, Portugal está pior. E por aí adiante. É claro que Costa não é Tsipras nem Maduro. Não é só usar gravata e não fazer discursos ostentando fatos de treino coloridos. É que não é mesmo. Mas tem, pura e simplesmente, de fazer passar a ideia de que a famigerada “austeridade” não é necessária, sabendo pertinentemente que o é e que, se fosse eleito, teria de prosseguir políticas desse tipo. Dito de outra maneira: tem de viver na má-fé.

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Tirando um ou outro (Manuel Alegre, imagino, especialista na sensibilidade política demonstrativa), os dirigentes socialistas não só sabem que a austeridade é, no contexto actual, uma exigência absoluta, como sabem que a suposta “colagem”, por vis motivos partidários, do Presidente da República (o mais legalista de todos os presidentes que tivemos) ao Governo é um puro mito. Acontece apenas que, por razões que todos conhecem, a via da acção política é estreitíssima e que a coincidência geral de opiniões entre Cavaco e Passos Coelho resulta disso. Fosse Costa primeiro-ministro e exibisse um grau de racionalidade que é lícito supor-lhe e acontecer-lhe-ia exactamente o mesmo.

Mas a questão mais geral e verdadeiramente interessante aqui não é, no fundo, a do regime de dupla verdade em que o PS se sente obrigado a viver. É a da estranha possibilidade de existir algo como uma linha clara que distinga a racionalidade da irracionalidade política. Não estou a referir-me à existência de simples actos políticos racionais ou irracionais: esses, é claro, verificam-se todos os dias, como se verificam em todas as coisas da vida. Refiro-me a situações, claramente mais frequentes en contextos onde o leque de possibilidades de imaginação e de acção política é  mais reduzido e quando a própria sobrevivência da comunidade política está em causa, onde quase se pode dizer que há provas em matéria política, onde não lidamos apenas com argumentos em conflito, situação que é naturalmente a mais corrente.

É como se, nas discussões políticas, o argumento “isso é irracional” ganhasse um peso pouco costumeiro e uma legitimidade própria. Ou, se se quiser, é como se as questões valorativas (“uma boa política”, “uma má política”) tendessem fortemente a ser substituídas por questões que se aproximam da pura objectividade (“uma política racional”, “uma política irracional”). Eu, pelo menos, apanho-me, com alguma surpresa, a ter cada vez mais este tipo de reacção. Admitindo que isto é verdade – e pode ser, é claro, que me engane em grande parte -, é uma situação parcialmente nova, pelo menos na clareza com que se manifesta. De uma novidade que não é propriamente um prazer, porque obviamente reflecte uma perda de liberdade substantiva.

Estou longe de pretender que a política de Passos Coelho exibiu, de forma constante, uma racionalidade impecável. Mas, nos seus traços gerais, fez racionalmente o que tinha de fazer. As variações dentro dessa racionalidade só podem ser mínimas. Se António Costa chegar a primeiro-ministro, nada poderá ser muito diferente. E se por acaso for, das duas uma: ou é muito bom sinal (o que, sem particular pessimismo, é improvável) ou é péssimo sinal (o que, somando tudo, é mais provável).