Em Lisboa, há uma pequena “aldeia” com cerca de 1000 pessoas; mais ou menos, mas não é necessário ser exacto. Vamos chamar-lhe a “aldeia dos 1000”. Esta aldeia é composta por dirigentes partidários, altos funcionários do Estado, empresários, jornalistas, financeiros e banqueiros. Conhecem-se bem e sabem o suficiente sobre as vidas uns dos outros. Frequentam os mesmos restaurantes, vão às mesmas festas, e muitos deles estudaram nas mesmas escolas e universidades. Os membros desta aldeia decidem o que o resto do país deve saber e deve conhecer sobre a realidade. É esse o seu grande poder e a linha condutora de quase tudo o que fazem. Em privado falam sobre quase tudo e tudo combinam. Mas o que dizem em público é filtrado. Os portugueses só devem saber o que os aldeões decidem que devem dizer.

De certo modo esta aldeia segue a velha tradição da corte lisboeta. A corte em Portugal resistiu a tudo. À revolução liberal, a guerras civis, à revolução republicana, ao Estado Novo e ao 25 de Abril. Os seus membros mudam, mas o seu papel de condutor da sociedade portuguesa mantém-se. Um dos feitos geniais dos pais fundadores da democracia portuguesa foi o modo como reconstruiram a corte lisboeta para continuar a controlar a sociedade democrática. Um feito admirável. Muito mais difícil do que numa monarquia ou numa ditadura.

A relação da aldeia lisboeta com o resto do país é simples: esconder as más notícias, mesmo que isso exija negar a realidade; e transformar as boas noticias – ou as menos negativas – num exercício de propaganda política. A verdade é secundária e o que interessa é criar uma narrativa, como se diz hoje em dia. Obviamente, uma narrativa que seja popular. Para a corte, os portugueses não merecem a verdade. Devem ser entretidos com ilusões. Curiosamente, a maioria dos portugueses espera e deseja isso da corte, sobretudo depois dos duros anos entre 2011 e 2015. Por isso, António Costa engana de um modo tão transparente. Costa dá-nos ilusões e os portugueses pedem, António dá-nos mais. E se a verdade é o que Passos Coelho disse nos quatro anos que esteve em São Bento, então preferimos as boas mentiras. O governo socialista adoptou a velha máxima católica da mentira piedosa. Mentem todos felizes.

2016 foi o ano em que a “aldeia dos 1000”, ou a corte lisboeta, decidiu que “2011” nunca existiu. Se não fosse a crise financeira criada por Wall Street, tudo continuaria a correr muito bem no nosso país. Sócrates conduzia Portugal pelo melhor dos caminhos. Mas a crise permitiu a “austeridade neoliberal” conduzida por Angela Merkel, no exterior, e por Passos Coelho, em Portugal, com o apoio de Cavaco Silva. Passada a crise, como decretou o governo socialista, poderemos regressar gradualmente a 2010. Não passa de uma ilusão, mas a verdade é irrelevante. O que conta é fazer acreditar que é possível. Um falso luxo permitido pelas políticas monetárias do BCE. Frankfurt emite a moeda que permite adiar reformas e acumular dividas. De certo modo, é um regresso ao início do Euro. Políticas viradas unicamente para o presente, sem pensar no futuro, com o objectivo de preservar privilégios apenas sustentáveis com o aumento permanente da dívida.

As políticas do BCE e a satisfação dos portugueses com a nova narrativa socialista reforça as duas convicções mais fortes da aldeia dos mil. Com mais ou menos dificuldades, a ‘Europa’ (ou a Alemanha) continuará a pagar, e os portugueses são pacíficos e satisfazem-se com pouco. Isto não é terra para populismos radicais. Pode ser que estejam certos. E se estiverem o país continuará nesta mediocridade satisfeita, com monarcas republicanos felizes, sem grandes abalos, mas sem sair de uma situação remediada. Mas estará Portugal preparado para o caso de estarem errados? E o que fará a aldeia se os aldeões estiverem enganados?

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