Vamos ter novas eleições aqui mesmo ao lado, em Espanha. Tal notícia não teria nada de estranho ou inédito, não fosse tratar-se de um ato eleitoral que se segue a outro realizado em novembro passado, sem que tivesse sido possível formar um novo governo: a democracia não garantiu os resultados esperados.

A este propósito, o jornal El Mundo, de 27 de abril, no seu editorial, cujo título é naufragio de los partidos, um futuro lleno de incertidumbre, escreveu

És la primera vez desde la aprobación de la constituición en 1978 que se tienem que celebrar unas nuevas elecciones porque los partidos no han sido capaces de ponerse de acuedo. Ello supone un fracasso de gran magnitude… que han transmitido la impresión de que este país es ingobernable y de que sus fuerzas políticas son incapaces de anteponer sus intereses particulares a la necessidad de responder a los importantes retos del momento.

Curiosamente, o novo ato eleitoral em Espanha terá lugar três dias depois do referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, a 23 de junho, pelo que podemos correr o risco de assistir a uma grande metamorfose do jogo democrático ou ao seu estertor, enquanto regime tal como o conhecemos e vivenciamos.

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As consequências de tal eleição poderão ser tanto mais graves, porquanto se trata de um país com um processo de democratização relativamente recente (iniciado em 1978, na chamada terceira vaga das democracias, como a caraterizou Samuel Huntington. E a preocupação aumenta se pensarmos que Espanha viveu desde 1936 com um regime autoritário, após uma sangrenta guerra civil, cujas marcas são hoje visíveis nas clivagens ainda existentes do ponto de vista social, cultural e religioso no seio da sua sociedade.

Ora, será este acontecimento em Espanha mais uma expressão da nova realidade a que, recentemente, o filósofo alemão Jurgen Habermas, designou de antipolítica (veja-se também, sobre o tema, o livro de Jacques de Saint Victor, Les Antipolitiques, 2014)?

Habermas, fala mesmo de uma exaltação antipolítica por parte daqueles que se acham acima dos políticos, como se significasse uma qualquer válvula de escape para o tédio face a uma exigência política insuficiente (Uma Constituição para a Europa, 2012). Ou seja, a expressão antipolítica, traduz uma forma de indignação moral e de rebelião por parte de franjas crescentes da opinião pública que pretendem libertar-se da velha política. Tratar-se-á, segundo esta visão, de um sentimento de protesto mais ou menos difuso que acaba por resultar em mais abstenção nos atos eleitorais ou em politização negativa.

Certo é que, para os inimigos da política, para os eternos inimigos da democracia, da liberdade e do estado de direito, este será mais um grande exemplo para justificar as suas críticas ao sistema tal como ele existe e, sobretudo, uma grande oportunidade para verem crescer os seus apoios nos povos assustados com a incerteza da globalização.

Aliás, muitos por essa Europa fora, em Itália, França, Espanha e Grécia, por exemplo, consideram estar, por esta via, a caminho de um projecto de contrapoder mais moderno, igualitarista, radical que pretende constituir um novo patamar em relação à política ou mesmo uma nova política: uma espécie de primavera ocidental ou, mais modestamente, uma primavera europeia.

Sabemos, hoje, infelizmente, onde nos trouxe e como está a terminar a dita primavera árabe. E ainda que não saibamos onde nos poderá levar a nova primavera ocidental ou europeia a verdade é que, pelos sinais que nos vão chegando, poderemos cair, primeiro, no estertor democrático, seguidamente na demagogia e no populismo e, por fim, numa qualquer ditadura para repor a ordem face ao caos.

O exemplo espanhol que vimos referindo é, aliás, bem elucidativo, pois as novas forças emergentes, Podemos e Ciudadanos, que apareceram precisamente para transformar a vida política, regenerá-la, devolve-la ao cidadão comum, não conseguiram ser diferentes do existente, desiludindo com o impasse em que se deixaram enredar. No fundo, apenas novas ambições, embora com os tiques e as intrigas de sempre.

Ainda assim, muitos poderão dizer que o acontecimento inédito em Espanha e porque não dizê-lo, inédito um pouco por toda a Europa, é um sinal de vitalidade da própria democracia. Dar uma segunda oportunidade aos cidadãos através do voto, será afinal o cerne, a alma, da democracia.

Não creio. Nem será esse, seguramente, o caminho que devemos trilhar. Não será essa a nova primavera dos povos. Não devemos dar espaço para a antipolítica e ao antipolíticos que mais não querem do que conquistar o poder e transformarem-se nos novos políticos.

O aperfeiçoamento constante da política é fundamental para sustentar as nossas sociedades, incluindo a substituição regular das classes dirigentes, mas isso deve fazer-se gradualmente, com bom senso e respeitando as regras democráticas.

E aqui que entram em cena, uma vez mais, os falsos democratas, aqueles que usam e abusam do conceito, reclamando que o que temos nunca é suficiente, dizendo-se descontentes, quer com a quantidade de democracia quer com a qualidade da democracia que temos.

Para estes, o caminho faz-se quer nome de uma pseudomoral com pretensas virtudes republicanas, quer em nome de uma democracia alternativa, assente numa elite regeneradora apoiada na multidão (conceito que Tony Negri, guru da esquerda mais radical, foi buscar a Bento Espinosa).

E entre nós? Portugal, com um lastro diferente, com um percurso autónomo, estará assim tão afastado para que não possa ser contaminado?

A nossa democracia também ressurgiu, após um longo período de autoritarismo. As nossas estruturas partidárias assentam em pressupostos diversos, mas o chão e as contradições são comuns. Portugal tem, também, uma longa tradição de políticos que se dizem não políticos, acima ou além da política, constituindo tal tradição um enorme trunfo na arte de governar.

Temos, no entanto, conseguido resistir à antipolítica. Esperemos, pois, que a nossa solução governativa, saída das últimas eleições, não seja a antecâmara para um impasse à espanhola.

E porque pela história e pela geografia viveremos para sempre em união de facto, pelo menos que de Espanha não nos cheguem mais maus ventos.

Professor universitário