Tenho desde há uns dias a televisão fixada no canal Eurosport, e espero continuar assim durante uns tempos largos. A razão mais imediata é ver a Volta à França. A outra, de mais vasto alcance, tem a ver com a purificação do espírito. Por uma razão ou outra, meteu-se-me na cabeça que o conjunto do que os outros canais oferecem produz um efeito danoso sobre a actividade mental e, pelo sim, pelo não, o melhor é jogar pelo seguro. O efeito danoso vem da frequência excessiva da coisa política e da mistura um bom bocado incómoda do racional e do passional que ela traz consigo. Às vezes convém fazer de químico mental e separar as misturas para isolar as substâncias. Pôr cada macaco no seu galho. Não é preciso que dure muito tempo. Uma semana pode fazer milagres.

De qualquer maneira, a Volta à França é uma razão absoluta em si mesma. A etapa de ontem, a primeira dos Alpes, foi, de resto, excelente. A subida do Col d’Allos e, depois, a descida e a subida final em Pra Loup foram magníficas. Como pano de fundo, há a beleza daquela paisagem da França onde quase não há vestígio algum de fealdade nas povoações por onde passa a Volta e a natureza é espantosa. Lava os olhos. Deus foi generoso com aqueles bárbaros, como dizia de Portugal um general apropriadamente francês durante as invasões napoleónicas. Depois, há aquele esforço de vencer e, nos grandes ciclistas, a inteligência física do esforço. Este ano, torço por Chris Froome. Só muito secundariamente por causa da maneira ignóbil como certos jornalistas e espectadores franceses o têm tratado (os franceses não ganham uma Volta desde 1985, o que explica muito). Principalmente, porque ele é mesmo o melhor. Até um ignorante como eu o percebe. E espero mesmo que chegue vencedor aos Campos Elísios no domingo.

Estes entusiasmos desportivos, longínquos de questões políticas, pacificam e servem de introdução às férias que vêm aí e de que este ano ando mesmo a precisar. Mas, porque sou um ansioso da pior espécie, não consigo passar os dias livres a ver a Eurosport. Note-se que gosto, por exemplo, de campeonatos de snooker, de saltos de esqui e coisas assim, mas não consigo evitar o sentimento de que deveria estar a trabalhar. O que coloca alguns problemas, porque, justamente, eu deveria, nestes dias que chegam, procurar, durante algum tempo, não trabalhar. Que fazer? Felizmente há alturas em que o destino, ou lá o que é, resolve as coisas por nós. E o destino benfazejo chegou-me desta vez através de um convite de uma amiga arquitecta para escrever uma prosa sobre um belo edifício, convite esse que me levou, por sua vez, a reler Paul Valéry. E reler Valéry é um prazer tal que é como se trabalhássemos sem termos o sentimento de estarmos a trabalhar. O complemento perfeito da Eurosport, portanto.

Valéry não foi apenas um grande poeta – e O cemitério marinho é um enormíssimo poema, sempre recomeçado como o mar de que fala. Foi igualmente alguém que, não sendo filósofo – vários dos seus escritos contêm uma crítica da filosofia enquanto tal – tocou profundamente várias das questões centrais da filosofia a partir de uma perspectiva originalíssima, ao ponto de um seu texto, “O homem e a concha” (não creio que haja tradução portuguesa), me parecer a melhor introdução à filosofia jamais escrita. Não creio ser exagerado dizer que a questão central de Valéry é aquela que é talvez a questão fundamental da filosofia: “O que é pensar?”.

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Valéry desenvolveu-a, sob muitos nomes diferentes, em vários livros publicados em vida (os cinco volumes de Variété, o escrito sobre Leonardo da Vinci e o maravilhoso livrinho sobre Degas, por exemplo). E, sobretudo, nos milhares de páginas publicadas postumamente sob o título de Cahiers. Valéry levantava-se diariamente às quatro da manhã – eu  é às cinco: particularidades de homens ilustres – e escrevia durante várias horas, sempre com uma admirável lucidez e muitas vezes com puro génio, as suas reflexões sobre as operações mentais levadas a cabo por cientistas e artistas no contexto das suas investigações respectivas. O resultado desse trabalho quotidiano de uma mente tão rica é uma mina de iluminações que não se conta. Tudo o que releva da ideologia, imprescindível em política (isto é, da mistura do passional e do racional), se encontra, na medida do possível, excluído.

Para Valéry, podemos compreender apenas aquilo que podemos executar mentalmente. Só podemos compreender verdadeiramente, em última análise, aquilo que sabemos fazer. Isto é: só podemos compreender aquilo que podemos determinar através de um encadeamento de operações – palavra-chave em Valéry – que são, por assim dizer, transparentes ao nosso espírito. Pensar é inventar, ou construir, rigorosamente um problema – o ponto de partida comporta sempre uma certa dimensão de arbitrário – e encontrar os processos para o resolver. Ao contrário do ponto de partida, a construção da solução deve apresentar uma forte componente de necessidade. A filosofia falharia, para Valéry, contrariamente às ciências e, num certo sentido, às artes, por não ser, regra geral, capaz de construir, logo à partida, problemas rigorosamente definidos e, consequentemente, por não ser capaz de necessidade nas suas soluções.

Este último parágrafo, eu sei, por resumir dogmaticamente um pensamento, não dá ideia do que é ler Valéry. Porque em Valéry, que quer tudo menos propor uma doutrina, o que se vê é o próprio movimento do pensamento, e é por isso que lê-lo, mesmo quando se o lê para trabalharmos, isto é, buscando ajuda para resolver os nossos próprios problemas, não pesa nunca: ao contrário, liberta. E, de uma certa maneira, purifica a cabeça. E purifica-a muito utilmente porque nos lembra, o que é muito necessário, a distinção entre saber e não-saber e como, até para efeitos da sobrevivência quotidiana, tendemos a eclipsar a distinção. Não é que Valéry seja um céptico, na linhagem, por exemplo, de Montaigne. Ao contrário, até. Mas lembra-nos que, no limite, só sabemos aquilo que somos capazes de fazer ou de reconstruir no nosso espírito. E lança um grande manto de descrédito sobre as grandes pretensões dos iluminados que, à custa de palavras sobre palavras, tanto mal fazem às nossas vidas.

Admito que ler Valéry e ver a Volta à França não entrem facilmente na mesma categoria. Mas há, apesar de tudo, algo em comum. Nos dois casos, estamos no plano das operações honestas: as do puro exercício do corpo e as do puro exercício da mente. Não há confusões. E ganha aquele que executa as operações mais eficazes para a solução dos problemas que se propôs resolver. Sem confundir coisas. No livro sobre Degas, Valéry conta que o pintor, que era dado à composição de sonetos, se queixou a Mallarmé, numa das muitas visitas que lhe fazia, de não conseguir acabar um soneto, apesar de ter a cabeça cheia de ideias. Resposta de Mallarmé: “Mas, Degas, não é com ideias que se fazem versos… É com palavras”. Exactamente. É sobretudo preciso não confundir.

Bom, vamos então lá ver como é que se passa hoje a segunda etapa – cento e oitenta quilómetros ou coisa assim – dos Alpes. E se o Froome ainda ganha, com as pernas, algum tempo em relação ao Quintana e ao Valverde. O Contador, depois da queda de ontem, já não tem muitas hipóteses.