Já muitas eras terminaram para outras terem o seu início. Em geral não aconteceu de repente, foi acontecendo, como no caso da queda do Império Romano, que durou mais de dois séculos; do advento da modernidade, feita ao sabor dos ventos e das marés navegadas pelas caravelas lusas e do Renascimento e dos filósofos escoceses; ou ainda da revolução industrial, com raízes nos novos processos manufactureiros na década de 1860 e cuja verdadeira dimensão (e impacto) só veio a ser compreendida pelos coevos em finais do século seguinte.

Algumas vezes, contudo, Mundos distintos coexistiram na mesma época, morrendo o antigo no momento do nascimento do novo. A (mítica) queda de Tróia, origem da bela Odisseia e da Ilíada dos heróis antigos da tradição clássica; a derrota de Atenas às mãos de Esparta na guerra do Peloponeso, tão magnificamente narrada por Tucídides e de que resultou o declínio do Mundo antigo, o fim da ilusão da união grega e a conquista da Grécia pelo rei macedónio; e a revolução francesa, a soviética, a vitória de Hitler nas eleições de 33, a queda do Muro em 1989, e tantas outras ocasiões em que a sociedade incumbente cedeu, inopinadamente, a novas ideologias, novas tendências, novos poderes.

Podemos estar a assistir a um momento semelhante.

A eleição de Donald Trump, por legítima que seja – e até prova em contrário, é-o -, representa uma alteração quase radical de paradigma do sistema político norte-americano, da sociedade americana, das relações internacionais. Depois dele, nada será como dantes nos EUA. Depois de Trump, nada ficará igual nas relações entre Estados e organizações pelo Mundo fora. Permitam-me os leitores que mantenha o máximo possível de honestidade intelectual, fazendo a seguinte salvaguarda: ainda não é certo, nem para mim nem para ninguém, se o novo POTUS fará tudo o que disse ir fazer e como o fará, se fizer. Mas nas palavras que pronuncia, nas promessas que reitera até, contra todas as expectativas, de forma cada vez mais veemente, é possível entrever um Mundo novo, uns novos Estados Unidos da América.

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Para ilustrar a diferença entre o Tempo Antigo, que Barak Obama personifica e o Novo, de que Trump é a quintessência, reflicto no discurso de despedida do ainda Presidente americano e procuro interpretá-lo à luz dos dias que se anunciam (com a salvaguarda referida): começa Obama por referir que, ao longo da sua presidência, aprendeu com o povo americano, o qual o fez um melhor Presidente e um melhor homem. Não é discurso que o novo Presidente possa vir a ter, Trump vem para comandar. E acrescenta Barak, em mais algumas frases feitas para ser emblemáticas: “A mudança só acontece quando as pessoas vulgares se envolvem, se comprometem e se unem para a pedir”. E ela, a mudança, é, diz Obama, o coração pulsante da ideia americana, da sua ousada experiência de auto-governo.

Há muitos outros conceitos e referências que sublinham bem a diferença entre o que foi e o que está para vir, mas talvez nenhuma tão simbólica como a contida na seguinte frase: “Durante 240 anos, o apelo da Nação à cidadania deu trabalho e significado a cada nova geração. Foi o que conduziu patriotas a escolher a República em vez da tirania, os pioneiros a dirigir-se para oeste, os escravos a ousar percorrer o caminho difícil para a liberdade. Foi o que levou imigrantes e refugiados a atravessar oceanos e o Rio Grande, levou homens e mulheres às urnas, levou trabalhadores a organizar-se”. Uma América excepcional, sublinhou Obama, capaz de mudar, feita de pioneiros, imigrantes e refugiados, feita por GIs e pelos homens que marcharam em Selma e Stonewall, feita para os cidadãos.

Um discurso impossível para Trump, cuja América é o oposto dessa, mais exclusiva, mais proteccionista, menos integrada, mais dos negócios que dos cidadãos.

Não vou, porque não posso, percorrer todo o discurso do Presidente cessante, mas é um bom exercício para, quase passo a passo, entender a mudança que se avizinha. Dois ou três exemplos mais: reconhecendo que a desigualdade continua a ser uma chaga aberta no tecido mole da democracia americana, Obama apela a um novo “social compact”, isto é, à criação de oportunidades para todos; e reconhecendo que a raça continua a ser um factor divisivo, afirma que a discriminação deve ser combatida, com leis, sim, mas também no coração de cada um; “para demasiados” americanos, disse, tornou-se mais seguro “fugir para as nossas bolhas”, rodeados de pessoas “como nós”. E conclui, a este respeito: “o crescimento da pura partidarite, fazendo crescer a estratificação económica e regional, a divisão dos nossos media em canais para cada gosto”, faz com que “apenas aceitemos informação, verdadeira ou não, conforme às nossas opiniões, em vez de as basearmos em factos e nas evidências”.

Uma última referência ao espírito dos pais fundadores e aos valores que levaram à criação, no pós-2ª guerra mundial, de uma ordem internacional em concerto com outras democracias, ordem essa baseada em princípios e não no poder militar ou em afiliações nacionais. Para proteger o nosso modo de vida, sublinha Obama, é indispensável resistir ao enfraquecimento desses valores, “que fazem de nós o que somos”.

Este é o Mundo que termina. Os apelos de Obama soam por isso um pouco como as prédicas dos padres bizantinos, em 1453, quando as hordas turcas de Mehmet II já penetravam no Corno de Ouro e se preparavam para pôr fim, para sempre, à antiga capital da velha Bizâncio.

No lugar deste Mundo inaugura-se dia 20 um Mundo novo. Um que, como tem repetido o Presidente eleito, se baseia em ideias distantes daquelas, como a construção de Muros, a perseguição e expulsão dos imigrantes ilegais (de todos os quase 12 milhões), o proteccionismo face ao exterior, o fim do Obamacare e da protecção de milhões de americanos (sem que para já haja qualquer coisa para pôr no seu lugar). Donald Trump critica antigos aliados – as democracias com as quais os EUA constituíram a nova ordem internacional – como a Alemanha, e vaticina, contra todas as regras da diplomacia internacional, o fim da União Europeia. Elogia Putin e a Rússia (já quase anunciou o fim das sanções) e aponta a China como o grande inimigo. Finalmente inaugura, qual anti-Obama, um novo paradigma da relação dos americanos com o comportamento dos seus líderes. De um líder moralmente irrepreensível, marido de uma só mulher, símbolo dos valores antigos da puritana América, os eleitores voltaram-se agora para o seu quase oposto. Se não é um novo Mundo, não sei o que um novo Mundo será.

E termino com a frase de Obama citando George Washington: “devemos rejeitar a (…) tentativa de alienar qualquer parte do nosso país e de enfraquecer os sagrados laços” que fazem de nós um único (e pluribus unum, de todos um); e enfraquecemo-los quando permitimos que “o nosso diálogo político se torne tão corrosivo que as pessoas de boa fé se afastam do serviço público (…) quando definimos alguns de nós como mais americanos do que os outros; quando condenamos todo o sistema como inevitavelmente corrupto, e culpamos os líderes que elegemos sem examinar o nosso papel na sua eleição”. Exactamente: quando culpamos quem elegemos como se tivessem culpa por o termos feito (uma questão de responsabilidade individual, afinal).

Dois Mundos colidem neste final de Janeiro de 2017. E o Mundo no seu todo não será mais o mesmo, disso podemos ter a certeza.

PS. Acharão alguns leitores que exagero; que não se pode comparar uma mudança eleitoral, reversível num próximo acto eleitoral, com a queda de Constantinopla ou a revolução russa. Talvez tenham razão. Por outro lado, talvez não tenham razão. Talvez o que se aproxime a passos largos seja um cataclismo de proporções desconhecidas. Ou talvez não.