Não foi assim há tanto tempo que o estado português foi salvo na tesouraria por um sindicato caritativo a que se convencionou chamar de troika. Como várias vezes repetido, provado e demonstrado, o estado português já tinha entrado num ciclo onde não seria possível continuar a arranjar dinheiro para as suas despesas da forma como tinha feito até aí: recorrendo à emissão de dívida que era absorvida no mercado financeiro pelos vários “consumidores” desse tipo de instrumento financeiro.

O sindicato formado para nos emprestar dinheiro exigia, no memorando que assinou com o governo de então e com o acordo de quase todos os partidos, a consolidação contabilística da dívida pública. Por outras palavras, queriam que toda a dívida do estado, a que estava à mostra e a que estava escondida, passasse a constar de um único número. Se essa exigência fosse feita a mim, à minha empresa ou a qualquer empresa, seria algo de muito grave. Significava que eu tinha sido desonesto ao ponto de esconder dos outros – acionistas, empregados, credores, clientes, etc. – a verdadeira situação da empresa.

Como resultado, a dívida soberana da república portuguesa subiu 40 mil milhões de euros em dois anos. Não que tenham entrado mais 40 mil milhões de euros em dois anos. Se assim fosse, o crescimento na medida do PIB seria enorme com a entrada de quase 1/3 daquilo que é o produto anual. Em termos numéricos, a “economia” portuguesa teria que ter “crescido” cerca de 14% em cada um dos dois anos, com a circulação de tanto dinheiro. E a verdade é que o crescimento foi negativo nesses dois anos. Isto significa que havia 40 mil milhões de euros de dívida escondidos que foram sendo trazidos aos livros do estado durante esse período. Mais ou menos o triplo do que estava escondido na fraude da Enron nos EUA que gerou um dos maiores escândalos financeiros do sec. XX.

A defesa dos mais fracos, dos portugueses a quem essa informação foi sonegada para proveito daqueles que detiveram o poder durante décadas, exigiria que responsabilidades fossem apuradas. Afinal, os políticos só podem reclamar legitimidade democrática se quem os elegeu estiver na posse de toda a informação presente. Até podem mentir com todos os dentes nas promessas para o futuro, mas os dados do presente não podem ser escondidos. Esconder dívida é por isso ainda mais grave no estado do que numa empresa porque além da questão financeira, há uma questão de regime.

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O que aconteceu foi que se montou uma nuvem em torno da coisa. O primeiro-ministro da altura anda a ser acusado de irregularidades na ordem da dezena de milhões de euros enquanto que aquilo em que os portugueses foram enganados é mil vezes mais e, quase certo, da responsabilidade de vários primeiros-ministros. O elefante continua a passear-se pelo meio da sala, sem que ninguém com responsabilidades na defesa do interesse público dê uma palavra que seja sobre a questão e já lá vão seis anos. E, até que surja um milagre qualquer, vai ser assim até que o assunto se desvaneça no tempo e na memória e o elefante morra. Se os administradores da Enron estão ainda na cadeia, junto com os auditores, é porque nos EUA a autoridade que protegia os mais fracos no assunto agiu, coisa que entre nós parece ser opcional para as nossas autoridades que, supostamente, até são independentes do poder político.

Veio-me à memória o assunto porque já anda outro paquiderme a passear-se entre a mobília chamado CGD. É relativamente óbvio para toda a gente que as autoridades portuguesas estão a cumprir ordens, no que à Caixa Geral de Depósitos diz respeito. O porquê de andarmos às ordens do BCE/Comissão Europeia e qual a verdadeira dimensão do escândalo em que o estado português está envolvido parece assunto em que ninguém quer tocar, apesar de escaparem sinais todos os dias.

Desde que a crise estoirou em 2008 que o BCE parece gerido por estagiários. Hoje o negócio da banca por toda a Europa é um não-negócio, no sentido em que não vale a pena investir nele. Ao contrário do que a regulação norte-americana conseguiu, o BCE fez com que não seja proveitoso para um banco ter clientes como eu ou como a esmagadora maioria das pessoas que estão a ler-me e que recebem salário pelo seu trabalho. Economicamente, a medida racional do meu banco seria mandar-me ir ao banco do lado.

Adicionalmente, disseram-me há uns dias que o Banco de Portugal, a sucursal do BCE em terras lusitanas, se prepara para multar 49 bancos portugueses por deficiências de reporte, aquilo para que serve um banco nos dias que correm – reportar. E os problemas dos bancos vão-se reproduzindo por essa Europa fora e, com eles, o “sucesso” do modelo do BCE que se arrisca a ficar para a história como a maior estupidez conhecida ao transformar os motores da liquidez na economia em enormes centrais de produção administrativa.

Agora, porque carga d’água um estado soberano se submete ao BCE na definição dos caminhos daquela que é a sua maior participação empresarial? É que os caminhos da CGD estão a ser definidos, não com o contribuinte português como acionista, mas sim com o BCE como dono. E esta parece-me ser a questão à qual as autoridades portuguesas, as presentes e as anteriores, andam a fugir a responder, apesar de ser inquestionável o dever de informar os cidadãos.

Não querendo tecer considerações sobre os nomes que têm sido escolhidos para gerir o banco, até porque nada me indica que não sejam merecedores do maior respeito e consideração, pessoal e profissional, faz-me uma certa confusão a necessidade dos nomes terem que ser escolhidos fora da CGD. Se me dissessem que os problemas do passado vieram dos gestores terem sido escolhidos no interior, eu até podia aceitar. Mas a esmagadora maioria dos gestores da CGD no passado eram pessoas que tinham tanto a ver com banca como eu com lagares de azeite. Ou seja, vinham quase todos de fora, pelo que o problema, hoje, não poderia ser esse.

E se a necessidade era assim tão grande de encontrar um nome fora da CGD, porque não procurar num banco maior que a CGD na Europa? Até a seleção nacional de futebol já foi treinada por estrangeiros e as condições financeiras oferecidas para gerir o banco não são exatamente modestas. E não há um ou dois nomes de gente “dos nossos”?

Não sei se repararam, mas deve ser a primeira vez que a CGD tem uma administração executiva limpa de nomes associados a partidos. À qual devemos adicionar o convite a Paulo Macedo, um independente acusado pelos políticos do governo atual de “destruir o SNS”. Se tudo o que tinha dito antes não lhe parecia estranho e ainda não o tinha convencido de que não são os políticos a decidir sobre a CGD, esta convence-o de certeza.

O meu ponto é que o leque de escolhas não era assim tão apertado como a confusão que se seguiu parece indicar. A não ser que a escolha esteja a ser condicionada de fora. E o consenso em torno da CGD é tão alargado sem que exista uma razão óbvia, que ninguém quer mesmo dar explicações a ninguém. Pior, qualquer questão que seja levantada publicamente sobre a gestão da CGD é vista como crime de traição.

A outra questão prende-se com a recapitalização da CGD, cuja necessidade, curiosamente, não constava de nenhum documento oficial. Até há poucos meses, ninguém diria que a CGD era um banco com problemas relevantes. Mas, ainda assim, o montante conhecido até agora, de 5 mil milhões de euros, não seria um montante relevante atendendo aos montantes envolvidos com BPN, BES e BANIF. Apesar da minha certeza que aumentar capital não contribui em nada para a resiliência do sistema financeiro e que isso é uma demonstração de não se perceber a mecânica da economia; comparando com os outros bancos, 5 mil milhões de euros seria um montante perfeitamente razoável e perfeitamente ao alcance do estado português. O que adensa a minha dúvida. Porque está o estado português a fazer aquilo que o BCE quer e ninguém questiona o porquê?

Como é costume, vamos já começar a recolher a palha para alimentar mais este paquiderme porque nada se vai saber fora do círculo de pessoas que, consensualmente, vai encontrando forma de esconder a realidade. Lança-se o nome do banco na lama, atira-se o rating para baixo, menoriza-se os profissionais que deram uma vida inteira pelo banco, colocam-se as culpas neles e vai-se tirar-lhes o emprego; tudo vale para que a verdadeira natureza do problema seja escondida dos donos disto tudo que, embora não vá parecendo, ainda somos nós.

Os assuntos de quem ninguém quer falar vão-se multiplicando na sociedade portuguesa, sempre com as mesmas consequências. Os mais fortes ficam mais fortes e os mais fracos ficam mais fracos. Os elefantes na sala de quem ninguém fala, esses, estão cada vez mais rechonchudos, prontos a tocar o sino a quem lhes mande uma moedinha.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer