O Serviço Nacional de Saúde está numa situação de aperto – tanto do ponto de vista financeiro, como em termos do seu desempenho operacional. Não é exagero nem cantilena dos críticos. É mesmo o que se pode concluir da leitura dos relatórios de duas auditorias lideradas pelo Tribunal de Contas, a primeira ao acesso a cuidados de saúde e a segunda às contas do Ministério da Saúde.

Sobre a situação financeira, o veredicto não poderia ser mais taxativo: a situação financeira do SNS é extremamente débil. Por um lado, a sua recapitalização não tem sido suficiente nem permite a “sustentabilidade da prestação de cuidados de saúde à população no médio e longo prazo”. Por outro lado, os fundos próprios do SNS caíram para níveis que não se registavam desde 2008, há dez anos atrás – 231 milhões de euros. Entretanto, porque não há milagres, as dívidas a terceiros aumentaram exponencialmente: no final de 2016 atingiram 2382 milhões de euros, mais 450 milhões do que em 2014. O rácio de endividamento alcançou uns perigosos 95% e, na prática, já não dá para funcionar a não ser através da dependência das dívidas a fornecedores. Tudo indica, de resto, que nesse campo de endividamento a tendência até se agravou no último ano. De acordo com a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), a dívida dos hospitais públicos aos laboratórios aumentou 14% entre Dezembro de 2016 e Dezembro de 2017.

Sobre o acesso a cuidados de saúde, os atrasos acumulam-se. Em 2016, o tempo médio de espera para consulta aumentou 6 dias (de 115 para 121 dias), registando o valor mais elevado desde 2012. Também nas cirurgias, o período médio de espera aumentou. De acordo com o Tribunal de Contas, a situação actual reflecte as opções políticas do governo. Isto porque, em 2016, interrompeu-se a emissão automática de vales cirurgia (quando o tempo de espera no sector público ultrapassava o limite). Mais ainda, a emissão de vales cirurgia foi substituída pela emissão de notas de transferência para unidades hospitalares do SNS (ou seja, transferências dentro do sector público, evitando recorrer ao sector privado e social). Diz o Tribunal de Contas que “esta opção teve efeitos negativos sobre os tempos de espera dos utentes, que poderiam ter visto a sua situação resolvida mais rapidamente se lhes tivesse sido dada a possibilidade de optarem por uma unidade hospitalar do sector social ou privado, através da emissão atempada de um vale cirurgia”. De resto, os números não enganam: o tempo médio de espera dos utentes transferidos passou de 259 dias (2014) para 300 dias (2016). Aliás, se calhar os números até enganam: o Tribunal de Contas acusou o Ministério da Saúde de manipular os dados de listas de espera, em 2016, eliminando administrativamente “pedidos com elevada antiguidade, falseando os indicadores de desempenho reportados”. Ou seja, é parecer do Tribunal de Contas que houve uma diminuição artificial das listas e dos tempos de espera, derivada de uma limpeza administrativa das bases de dados.

A soma dos factos trazidos à luz pelo Tribunal de Contas nos últimos 4 meses tem potencial de escândalo, apesar do silêncio reinante. Ora, mesmo que ignorada, a realidade não desaparece: as opções deste governo, só possíveis graças à conivência de BE-PCP, pioraram o SNS e o acesso à saúde, aumentaram os tempos de espera, ampliaram o volume de dívidas a fornecedores e ameaçam agora a sustentabilidade financeira do sistema a médio/longo prazo. Traduzido para politiquês e recorrendo a uma linguagem que lhes é cara, os partidos da esquerda parlamentar têm sido os protagonistas improváveis da “destruição” do SNS.

O caso é inquietante e espelha o guião político deste governo. Ao optar por rápidas reposições salariais e pela satisfação de reivindicações corporativas, o governo calou a contestação e satisfez clientelas sectoriais. Mas o dinheiro não é elástico. E, porque a contenção orçamental não desapareceu do horizonte nacional, os cortes que já não se aplicam nos salários passaram a aplicar-se no funcionamento dos serviços – na saúde, como em muitas outras áreas da administração. Dir-me-ão que é uma estratégia eficaz para fins eleitorais – e, lendo as sondagens, talvez o seja. Mas também tem um preço: a degradação do Estado Social. Eis, portanto, a forma mais cínica de austeridade: aquela que, em vez de ir à carteira, corta no Estado Social e prejudica directamente as populações mais dependentes dos serviços públicos.

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