A vida está cheia de decisões difíceis: que carreira seguir ou a que vocação responder (carreira e vocação nem sempre são a mesma coisa), amar ou não amar, revelar ou não revelar, arriscar ou não arriscar, namorar, casar, divorciar, recomeçar, ter filhos, desistir, perseverar ou desistir para preservar. E nada disto é fácil: temos de lidar connosco, os nossos ciclos anímicos, a nossa racionalidade, o enviesamento dessa racionalidade, a falta dela, os outros, a importância dos outros, as circunstâncias (ou “envolvente”), os costumes, mas também as leis.

Na moderna sociedade europeia (já nem sei se se pode usar este conceito nos tempos que correm) vai-se consolidando uma ideia de que se deve ser livre no que nos diz exclusivamente respeito. E sobre esse tema, até recomendava o revigorante On Liberty de Stuart Mill, para uma espécie de excitação juvenil de candidato a filósofo ou político. Mas estes princípios gerais, embora sejam determinantes a apontar caminhos, não são decisivos na hora de os escolher. Na hora de escolher é necessária uma total liberdade interior. E isso ninguém sabe o que é, seja nas decisões de carreira, de amor, prudência, desistência ou resiliência.

Quando sabemos que estamos a morrer, imagino que a complexidade individual e a complexidade de cada um na sua relação com os outros e com o mundo ressurjam num rebuliço que não sossega, nuns casos, se transforma em torpor, noutros, ou se esvai numa serenidade nem sempre compreensível por quem está à nossa volta.

E o que tem uma lei sobre a morte assistida a ver com essa luta interior de todos os dias? Tudo.

Reparemos que é um debate bastante diferente do do “aborto” (ou “IVG”, para quem não se quiser deixar confrontar com o tema). No caso do abortamento, debatia-se o valor de uma vida alheia e em que medida essa vida alheia era suficientemente vida e suficientemente alheia para que a sua gestora (“gestante” não está aqui de propósito) se visse tolhida na sua liberdade. A sociedade portuguesa escolheu o que escolheu e não venho repisar o tema.

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Já na morte assistida, discute-se a intervenção de terceiros na concretização de uma liberdade cuja propriedade aparentemente não se questiona: a de quem quer morrer. Simplesmente, a aparente simplicidade do tema esquece que, como se escreveu acima, temos de lidar connosco, os nossos ciclos anímicos, a nossa racionalidade, o enviesamento dessa racionalidade, a falta dela, os outros, a importância dos outros, as circunstâncias (ou “envolvente”), os costumes, mas também as leis.

Há leis que têm medo da nossa liberdade, são paternalistas: depois dos sessenta, já só nos deixam casar em separação de bens. É a sociedade, com a sua experiência, a proteger-nos da volatilidade interior perante a complexidade do exterior. Discutível, mas compreensível.

É precisamente nesse ponto que se instala a minha dúvida sobre a “eutanásia”: uma lei proibitiva protege-me mais ou menos do que uma lei permissiva? Serei eu livre, quando me sentir um peso – ainda que digam e sintam que não o sou –, estiver desgastado num mês com mais dores ou sem ver os netos emigrados? Mas, por outro lado, pode alguém impedir-me de ter a liberdade de não ser livre? Ou seja, de me deixar consumir com os meus ciclos anímicos, a minha racionalidade, o enviesamento dessa racionalidade, a falta dela, os outros, a importância dos outros, as circunstâncias (ou “envolvente”)? Não sei.

E essa é uma dúvida que não se resolve com paliativos. Ou seja, que não se resolve prometendo que serão criadas as condições para tomar uma decisão livre. Não vão ser, como não acontece no abortamento. Não temos dinheiro, mentalidade, nem País para assegurar uma abrangência de cuidados paliativos que torne a envolvente menos pressionante.

Por tudo isto tenho a dúvida; dúvida que quero debater e desfazer enquanto posso, porque, daqui a alguns anos (espero que muitos), não me interessa o Trump ou a Síria, mas poderei estar ensimesmado no que fazer dessa vida que me tem dado tanta coisa.

Advogado