(Continuação do artigo À Esquerda da Saúde)

O ministro da Saúde entende que “as coisas têm corrido bem” e não vê “ nenhum motivo para que não continuem a correr tão bem como até aqui”. Corre tudo bem? São assim tantas “coisas”?

Nos últimos seis meses tivemos medidas positivas. Abriram as VMER dos hospitais do Barreiro e Amadora-Sintra. Construi-se um programa prioritário para a actividade física. Desenvolveu-se um plano para a literacia em saúde.

Foi bom continuarem o que vinha da legislação reformista da coligação PSD-CDS e dos trabalhos em curso. Nomearam a comissão para a avaliação de tecnologias da saúde. Reafirmaram a disposição de rever a comparticipação dos medicamentos originais que têm genérico. Nomearam a comissão de coordenação para os cuidados paliativos. Alargaram o plano de revisão e construção de redes de referenciação, não sem terem antes revogado uns diplomas para depois publicarem outros essencialmente iguais. A receita desmaterializada tem sido um sucesso que merece ser expandido, como estava previsto, à prescrição de meios complementares de diagnóstico.

Mas são os “anúncios” e a propaganda que, pela sua frequência e teor, que nos levam a concluir pela falta de estudo e meditação sobre os condicionalismos e implicações das medidas aventadas. Fica-nos a sensação persistente de dossiers mal lidos, de muita “politiquice” e falta de consistência.

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Para a prevenção das doenças, apesar de muitos anúncios, ainda só tivemos a proibição de venda de alguns alimentos e bebidas nas máquinas de vending colocadas em instalações do SNS. Foi só mais um sinal, um piloto, já que a substância, abarcar todos os alimentos inadequados para jovens à venda em escolas, obrigaria à coragem que o Governo não mostra.

A tão propalada “liberdade de escolha” não é mais do que a constatação de que as redes de referenciação podem e devem funcionar para lá da visão loco-regional. Mas o que nos falta saber é como essa referenciação é acompanhada do ponto de vista do financiamento hospitalar. Foi o MS quem disse, a propósito dos centros de excelência, que “não basta apenas reconhecer no plano formal, também é preciso reconhecer no plano material”. Disse também que “haverá uma discriminação positiva, ou seja, os hospitais que têm centros de referência terão um pagamento diferenciado em relação aos que não têm”. Quando cumprirá a promessa? É que em matéria de reforma hospitalar, não tranquiliza saber que vamos a caminho do terceiro coordenador em seis meses e, de realizações, ainda só tivemos um congresso.

O anúncio de que, a partir de 2016, não haverá emissão de cheques para cirurgia fora do SNS, a não ser que se se faça prova da necessidade, está algures entre La Palisse e a falta de imaginação. Hoje, a emissão de cheques para cirurgia, ao abrigo do programa do SIGIC, já depende da demonstração da incapacidade de resposta e onera a instituição pública que os emite. O que falta saber é se mais este ímpeto de internalização, que foi tão criticado quando nós o fizemos em 2011 e 2012 para os meios complementares de diagnóstico, não levará a aumento das listas e dos tempos de espera por cirurgia.

Temos um Portal, onde eu depositei grandes esperanças, mas que não informa de muito do que é relevante. Falta, por exemplo, a regular divulgação dos utentes sem médico de família (não é divulgada desde janeiro de 2016), a lista de candidaturas e de aberturas de novas unidades de saúde familiar (não é divulgada desde dezembro de 2015). Quantas unidades já abriram este ano?

A eternamente inacabada, no dizer dos seus mentores, reforma dos cuidados primários é, por enquanto, mais um conjunto de quadros em power point. Até novembro de 2015, durante os anos da Tróika, abriram 143 USF e 129 Unidades de Cuidados na Comunidade, as de enfermagem para assistência domiciliária. No número máximo de USF a abrir em 2016, não houve aumento, ao contrário das expectativas criadas (61 autorizadas em 2015, 55 em 2016). A previsão dos números de novas USF A diminuiu (43 em 2015, 30 em 2016), mas a passagem a USF B, as que dão incentivos remuneratórios, aumentou (18 em 2015, 25 em 2016). Quanto vai isto custar em 2016, 2017 e seguintes? E os médicos das unidades que não são USF, vão ter também direito a incentivos por desempenho? Quando?

No que à contratação de médicos diz respeito, o Governo em funções apenas tem feito o que já era anteriormente a regra, tentar contratar todos os novos especialistas. Nada de novo. O número de vagas para internato de especialidade aumentou, entre 2012 e 2015, a um ritmo crescente. Para Medicina Familiar, em 2011 entraram 378 médicos, os que terminaram no ano passado. Em 2012, entraram 436 internos e, em 2015, foram 512 para esta especialidade. Inevitavelmente, como sempre disse, em 2018 o problema de falta de médicos deve estar muito mitigado. Não será um sucesso que se possa atribuir a este ministro. Tal como a maior redução de sempre em contratação de horas a empresas foi a efectuada pelo XIX Governo, entre 2012 e 2015.

Entre 2010 e 2015, foram contratados 280 médicos aposentados. Com a nova legislação, a que garante 75% de salário a acumular com a reforma e, desta forma, premeia duplamente uns enquanto paga muito menos a outros, quantos novos médicos reformados já foram contratados? E nutricionistas/dietistas, psicólogos, assistentes sociais, já entraram mais quantos para os centros de saúde?

O caso dos dentistas em 13 centros de saúde, ainda que limitados a atender utentes com problemas específicos, poderá, na análise superficial de quem decidiu, ter parecido uma boa promessa. Não teria sido melhor continuar o alargamento do “cheque dentista”, um excelente programa lançado por um Governo do PS e de cobertura mais ampla? Foi nesse sentido que, em 2015, decidi alargar a cobertura até aos 18 anos determinando a entrada em vigor desse alargamento em março de 2016, tal como pedido pela DGS. Felizmente, não a revogaram.

O eventual concurso público para diretores de serviços médicos, outro anúncio do ministro, poderia parecer uma boa ideia. Mas não introduz nada de substantivo, já que os Conselhos de Administração podem sempre escolher uma pessoa de fora da instituição e um concurso só atrasa o processo e dá azo a impugnações, bem típicas da função pública. Seria mais relevante, determinar que os diretores de serviço não poderiam cumprir mais do que dois mandatos consecutivos de três anos, evitando a atual tendência para a perpetuação no cargo.

No que concerne aos cuidados continuados, o seu coordenador apresentou o melhor, o mais honesto e mais inteligível plano de desenvolvimento. Apesar de só haver divulgação de dados em bruto, sem indicação das localizações dos lugares, podemos constatar que só foram abertas umas escassas 150 camas, faltando mais 600 para cumprir o anúncio para 2016. Ainda aguardamos a Portaria Conjunta de autorização de contratos novos. Afinal, onde, quando e de que tipologia vamos ter lugares novos de cuidados continuados este ano? Para saúde mental, apesar de autorizadas no final de 2015, ainda não abriu nada. Congratulemo-nos com a abertura da unidade pediátrica, Casa do Kastelo, cuja inclusão na rede de cuidados continuados foi possível pela alteração que fizemos na lei, em 2015. E a rede domiciliária, vai ser apenas fornecida pelo setor público? Não será a altura de rever a legislação, de forma a permitir a contratação de cuidados domiciliários ao setor social e privado?

É verdade que diminuíram o valor das taxas moderadoras, mas como não têm sido divulgados os resumos da monitorização mensal da atividade assistencial no SNS (o último é de setembro de 2015 e foi divulgado ao público em novembro desse ano) não é possível concluir se houve alterações no perfil de acesso.

Porque da leitura das últimas declarações do ministro da saúde poderá surgir a dúvida, é preciso esclarecer que os dadores de sangue nunca pagaram taxa para dar sangue – as dádivas nunca foram sujeitas a taxa moderadora – sendo que apenas tinha sido suspensa a isenção de taxa em consultas hospitalares e serviços de urgência. Por outro lado, os dadores de sangue, nunca deixaram de estar isentos de taxa nos cuidados primários, onde o seu estado de saúde deve ser aferido e mantido.

Devo lembrar que foram as medidas do Governo PSD-CDS, culminando no alargamento da isenção até aos 18 anos, que determinaram o maior número de pessoas isentas de taxas moderadoras da história do SNS.

A trapalhada das 35 horas ainda está por resolver. Entre a irresponsabilidade de já ter sido dito que a solução seria mais fácil do que parecia inicialmente e a incapacidade de nos dizer quanto vai a medida custar, também em 2017 e seguintes, interessa que se saiba que o problema não reside só nos enfermeiros e que, ao contrário do que foi feito nas repartições de finanças, os hospitais não podem fechar mais cedo. A desejável contratação de 3000 enfermeiros apenas faria a reposição de horas perdidas, quase 125 mil / ano, e não serviria para colmatar as faltas de enfermeiros que já foram identificadas.

A discussão tem estado centrada nos custos resultantes de mais contratações ou horas extra. Do prejuízo para os utentes, dos exames que se atrasarão, das consultas que deixarão de ser feitas e do menor tempo disponível para atendimento nos serviços, ninguém fala.

O corte no pagamento do suplemento das horas extraordinárias, diz respeito a todos os trabalhadores de saúde nos hospitais, não apenas aos médicos. A reposição deste valor, cuja justiça no quadro legal vigente não merece discussão, não se referirá apenas às horas cumpridas para lá das 200 horas médicas “obrigatórias” mas aplicar-se-á a TODAS as horas extraordinárias cumpridas por médicos e enfermeiros. Basta reconhecer que o Decreto Lei 62/79 nunca foi revogado, apesar da Tróika que o PS nos trouxe. Esperemos para ver como vai o ministro tratar deste problema que diz compreender.

«A popularidade e o êxito”, escreveu Vargas Llosa na Civilização do Espectáculo, “conquistam-se não tanto pela inteligência e pela probidade, mas sim pela demagogia e o talento histriónico». Em boa verdade, com tudo o que está a ser adiado para o final de 2016, os impactos financeiros só serão totalmente visíveis em 2017. Os portugueses não querem um Governo que apenas prepara eleições. Queremos saber que Saúde nos vão garantir para a vigência do Governo que se deseja estável e de legislatura.

Ex-ministro da Saúde