Passados os primeiros seis meses de 2016 convirá fazer um balanço do que tem sido a Governação da Saúde pela “junção” PC-BE-PS. No essencial, temos tido falta de ideias boas e originais, enormes dificuldades financeiras e incapacidade de cumprir com as promessas. O PC é o mais conseguido dos três parceiros. Ganhou a reversão da concessão de exploração dos transportes públicos de Lisboa e Porto, conseguiu a reposição dos cortes salariais da função pública em apenas um ano, quase conseguiu o valor que queria já para o salário mínimo, reforçou a importância da CGTP, deu força à FENPROF através do combate aos contratos de associação com escolas privadas, impôs as 35h horas na função pública e vai conseguir que os contratos individuais de trabalho no Estado, se bem que estabelecidos para 40 horas de trabalho, passem também para 35 horas. Para isso, já marcou greves no SNS. Recuperou uns feriados, o que até nem foi mau. O BE, entretido na sua tradicional falta de ideias consequentes, continua a apostar nas causas que denominam de “fraturantes”, ainda que essencialmente irrelevantes para a maioria da sociedade e inúteis para a economia, e vai beneficiando do protagonismo de Catarina Martins, a mesma que nem se sente “obrigada a defender a governação do PS” com quem assinou um documento que chamaram de acordo.

O PS, para lá da distribuição de alguns lugares, nada ganhou. Foi António Costa quem venceu. A sua carreira política, a única que ele tem, dependia de ser PM. Portugal perdeu.

Faço parte daquele grupo de pessoas, eventualmente restrito, a quem a definição de “político” ou “politicão”, nos termos em que alguns comentadores se referem ao Dr. António Costa, deixa profundamente incomodado. Acredito que a Governação de um país tem de ser feita de acordo com apreciações de ordem técnico-científica, incluídas as das ciências humanas, e não pela “arte” de disfarçar, mentir, adiar, esconder, manipular, contornar, evitar e nunca deixar de sorrir.

No meio de tudo isto, com um Governo que aguarda, já não serenamente, pelas próximas eleições, temos um ministro das Finanças que já vai admitindo os seus falhanços e um outro, o da Saúde, que nos diz que fez “os estágios”, como se isso nos interessasse.

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A verdade é que quando o ministro da Saúde fala, na falta de substância, vai dizendo umas banalidades e fazendo uns anúncios que oscilam entre o irrelevante, o óbvio e a demagogia, sem esquecer a inabilidade que foi desautorizar a Senhora Presidente da ACSS – a agência do ministério que administra e gere toda a despesa do Ministério e os recursos humanos do SNS – , a quem terá reduzido ao estatuto de “cidadã circunstancialmente presidente de um instituto que trabalha com o ministério da saúde” quando esta admitiu a evidência, posteriormente secundada por outros, de que poderá haver necessidade de orçamento retificativo. Ora, se houver OE com rectificação, confrontado com o seu erro, que fará o MS? Demite a Dra. Marta Temido por esta ter tido a ousadia da presciência? É que o nosso ministro, nas suas palavras, não gere previsões, já que “estas arruínam a confiança das pessoas no seu futuro”. Pois é, mas o MS também admite que “a realidade impõe-se sempre às previsões”. Vamos estão à realidade.

A política do atual Ministério da Saúde tem sido baseada em “refundar”, “relançar”, “rejuvenescer”, “revigorar”, “regenerar”, “recuperar”, como se tivessem caído num País perdido, sem saúde, sem SNS, sem nada. Reminiscências de um outro ministro que achava que a margem sul do Tejo era um deserto. Esta ficção de que tudo estava pior do que quando nos deixaram entregues ao programa de resgate da Tróika, acertado entre o PS e os credores, não tem base de sustentação em nenhuma análise de indicadores económicos ou de saúde. Não se espera que na saúde, onde os movimentos são bem mais lentos do que na economia – salvo em situações de catástrofe epidémica ou de desastre natural –, haja outra coisa que não seja a melhoria continuada dos principais indicadores que são medidos. O SNS é sólido, embora não seja indestrutível, e a situação sanitária nacional já atingiu um patamar de que não deverá descer abruptamente. O que não quer dizer que, na ausência de medidas continuadas e bem direcionadas, não possa haver deterioração, ainda que lenta, do estado de saúde da população.

É evidente que estamos amarrados a uma visão do sistema de saúde, a do ministro da Saúde, em que os privados crescem por “predação” do setor público e aos primeiros apenas deverá ser dado o lugar que sobrar da incapacidade do Estado providenciar tudo a todos. Sendo este o caminho mais curto para a insustentabilidade do serviço público, a pergunta óbvia é se não deve ser o Estado a garantir aquilo que os setores social e privado não podem, nunca poderão, nem querem fazer? E qual é o papel que pretendem dar aos municípios? A legislação existente que confere competências na saúde às autarquias é para revogar ou esquecer?

Um exemplo muito claro da incapacidade de resposta em tempo útil, de que habitualmente não se fala, reside na capacidade de realizar exames de imagem no SNS que é cronicamente deficitária nos hospitais públicos com grande movimento. Este e outros problemas só poderão ser resolvidos através da contratação externa de serviços ou do alargamento do horário de produção. Mas, como é evidente, com o tipo de pagamento que é possível para as horas extra, ainda mais necessárias com as 35 horas, e a dificuldade de contratar mais pessoal, será sempre difícil responder a todas as necessidades. É certo que há melhorias possíveis no tipo e frequência de exames que são pedidos, tal como no tipo de medicamentos prescritos, mas não devemos acreditar que será só com medidas de racionalização dos pedidos de exames que se eliminam as filas de espera para a conclusão de diagnósticos, muito dos quais oncológicos e imprescindíveis. Cá está uma informação que deveria constar do Portal da Saúde. Quanto tempo demora um doente, num qualquer hospital do SNS, a conseguir uma TAC pedida na consulta?

Sem capacidade para reformar e sem olhar para o espelho, a atual equipa do Ministério da Saúde continua a insistir em que o caminho seguido antes deles foi o mais fácil, o de cortar na despesa. O OE para a saúde encolheu em 2016. A austeridade não acabou, reforçou-se. Prova disso são os despachos 32 e 45/2016, do secretário de Estado da Saúde, que impedem os Hospitais EPE de assumirem nova despesa, se esta for superior a 25 mil Euros, na contratação de serviços e pessoas ou na aquisição de bens, incluindo medicamentos. Onde está a maior autonomia hospitalar que tinha sido prometida? Quantos hospitais ainda não assinaram o seu contrato programa?

Para já, o que sabemos é que, mesmo só com medicamentos “velhos”, os pagamentos em atraso estão a crescer, cerca de um terço mais desde o fim do Governo anterior. A inovação farmacêutica vai ficar onde? Com este rigor, merecedor de respeito, quantos novos fármacos vão ser introduzidos, este ano, no SNS? Com tanto aumento de despesas com pessoal, diminuição da receita, diminuição do orçamentado, cativações e redução dos orçamentos dos hospitais, era inevitável que a dívida aumentasse.

A investigação biomédica é outra vítima da contenção de despesas. No que envolve os centros académicos, o que se vê, além de mais uma comissão, foi o congelamento da legislação que tinha criado um estatuto remuneratório próprio para médicos investigadores.

O problema não está em ser responsável. Como disse o MS, com a minha concordância, “as prioridades têm de ser definidas de acordo com a capacidade orçamental para as acomodar”. Além de ficarmos mais tranquilos, porque afinal o ministro faz previsões, está aqui clara a desonestidade intelectual de um Governo que declarou o fim da austeridade e se apoiou na extrema-esquerda com nesse pressuposto. E ouvimos a mesma falta de honestidade quando ainda nos querem convencer que as questões essenciais do SNS são de organização, como se a “organização” não dependesse de meios humanos e técnicos que não podem continuar a estar sub-financiados.

O cúmulo geringonçal está na Resolução nº 85/2016 da AR, de 15 de abril, aprovada pela maioria de esquerda, onde se recomenda que, espantem-se os que ainda se podem espantar, o Governo “proceda à integração dos hospitais do SNS no setor público administrativo, a qual deve estar concluída no prazo máximo de dois anos”, ou seja, que se acabe com hospitais PPP e EPE que foram concebidos e montados por Governos do PS.

(primeira parte do artigo do ex-secretário de Estado e ex-ministro da Saúde; a segunda parte será publicada nos próximos dias)