Há mais de 2600 anos, antes de Roma ser uma república e muito antes de se tornar um Império, reinava Tullius Hostilius e uma guerra brutal opôs Roma à cidade de Alba Longa.

Mostrando ser mais inteligentes – ou humanos – do que os nossos contemporâneos, os monarcas respectivos concordaram decidir o conflito através de um combate entre três campeões, três irmãos, por cada uma das partes desavindas. Foram os Horácios por Roma e os Curiácios por Alba.

Ao primeiro choque, dois dos Horácios morreram, os três Curiácios ficaram feridos. Os Albanenses rejubilaram, com a vitória à vista. Um homem indemne, enfraquecido e só, não teria grandes hipóteses contra três inimigos feridos mas ainda em condições de combater.

O Horácio sobrevivente decidiu então fugir. Os Curiácios, excitados por aquela demonstração de cobardia, lançaram-se no seu encalço. Mas estavam feridos, diminuídos em graus distintos, pelo que se foram distanciando uns dos outros. Aproximando-se o mais ligeiro do Horácio e vendo-o este sozinho, matou-o de um golpe.

Entre os dois Curiácios restantes desenhara-se outro fosso, com o mais fraco a ficar ainda mais para trás. O Horácio matou o segundo sem dificuldades e enfrentou o sobrevivente com a confiança das duas fáceis vitórias. A espada que cravou no pescoço do Curiácio vibrou nas gargantas de milhares de romanos vitoriosos e chegou aos nossos dias, em forma de lição.

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Foi em Roma no dia 25 de Março de 1957, na sala dos Horácios e dos Curiácios do Museu Capitolino, que os representantes de seis países europeus assinaram o Tratado de Roma, direito fundador de uma das mais importantes organizações dos nossos tempos:

A Comunidade Económica Europeia, ou CEE, percursora da União Europeia de que hoje também Portugal faz parte. Além da CEE, o Tratado de Roma estabeleceu ainda a criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom). CEE e Euratom juntaram-se à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, que fora criada em 1951. Juntas, constituíram as três “Comunidades Europeias”. Com o tempo, vieram a dar lugar à União Europeia.

A Comunidade Económica Europeia foi criada para impedir os países europeus, quais Curiácios feridos e ignorantes num Mundo cada vez mais interdependente e menos europeu, de serem um a um imolados no altar da globalização. Despojado dos seus Impérios, com um peso demográfico cada vez menor e uma concorrência dos países do resto do Mundo cada vez maior, o velho continente, sem a integração europeia, arriscava a irrelevância.

A Comunidade Económica Europeia salvou a Europa do seu anunciado futuro: e uniu países e povos em torno de interesses comuns, acabou de vez com a guerra civil europeia, velha de milénios; desde o Peloponeso, desde Roma contra os bárbaros, desde Carlos Magno e a Guerra dos 100 anos, Napoleão, Sarajevo ou Hitler. Fartos de se imolar no altar da estupidez e dos ódios seculares entre os povos europeus, quais Curiácios em permanente auto-destruição, os pais fundadores dessa Comunidade de interesses partilhados tinham um fito principal:

A Paz.

Os Estados Unidos da Europa são um sonho; sonhou-os Victor Hugo, autor de “Les Miserables”, profetizando-os em pleno século XIX para um futuro não muito distante. Eles acabariam para sempre com a guerra no continente terrível e glorioso que foi de Jerusalém; que foi de Atenas e de Esparta, que foi do Monte das Oliveiras, que foi de Roma; apesar da profecia, ainda tiveram de acontecer mais duas guerras mundiais, 70 milhões de mortos…

E a CEE fez-se, há 60 anos, nesse dia de Roma de 1957. Pôs um ponto final na guerra entre os povos que dela aceitaram fazer parte. Criou um mercado comum entre seis países europeus, com uma pauta aduaneira comum, instituições próprias e algumas políticas partilhadas, estabelecendo um sentimento de destino partilhado entre os seus povos – tornando as guerras impensáveis e fundando as bases de uma prosperidade sem precedentes.

Este é, sem dúvida, um dos mais extraordinários projectos de engenharia política, e económica, e social, de todos os tempos. Um projecto de e para visionários. Uma causa, uma extraordinária causa, que é também, a um tempo, o cadinho de princípios e valores que expressam de forma lapidar a evolução dos povos do Ocidente, laboriosamente consolidada em séculos de filosofia, de revoluções triunfantes, da pena a sobrepor-se à espada: democracia, liberalismo, império da lei, respeito da dignidade humana, direitos fundamentais.

Claro que a União Europeia, herdeira da CEE, está em crise. Fundamentalmente, contestam-na os nacionalismos retrógrados, herdeiros dos velhos Curiácios lentos e feridos, lentos porque feridos, que preferem correr sozinhos a progredir unidos; os soberanistas de todas as proveniências, das extremas esquerda ou direita ideológica, que continuam a acreditar que as nações europeias e as suas identidades nacionais são entidades antiquíssimas, irredutíveis, a quem a integração europeia veio roubar o privilégio da independência e da exclusividade.

Estão enganados. A Europa dos Estados-nação, assente em nacionalismos recentes e identidades em muitos casos inventadas, é recente e frágil. Se se alcandorou a um lugar de privilégio no concerto das nações, foi porque construiu Impérios, dominou o Mundo e os termos da troca de matérias-primas e produtos acabados, porque impôs a força dos seus exércitos a povos mais atrasados tecnologicamente.

Mas se esse tempo veio, esse tempo foi-se. A Europa já não domina o Mundo. Começou a perder o predomínio global no século XIX, suicidou-se em menos de cinquenta anos e ressuscitou no último quartel do XXº para surgir no XXIº em perda permanente, sobretudo no plano demográfico, naturalmente no plano militar, inevitavelmente no plano económico.

A União Europeia é o último dos Horácios a bater-se contra a derrota iminente do seu povo. Os apelos nacionalistas, que confundem identidade nacional com proteccionismo, isolacionismo e xenofobia, oferecem apenas o regresso a um passado inexistente. Uma aporia e um oximoro.

A União Europeia não é perfeita e precisa de se reformar, de se reinventar, de reconquistar o coração dos europeus para a causa da integração. Uma integração baseada na liberdade de circulação, nos princípios e valores europeus, no respeito pelas identidades nacionais, na subsidiariedade e na flexibilidade. Que não impeça a plena fruição das identidades de cada povo. Nós, em particular, portugueses, nunca perderemos o orgulho de sermos os filhos deste país antigo de 900 anos, com uma língua que é nossa e com gosto partilhamos, com uma História velha e rica feita de vitórias, derrotas e exemplos, com um espírito próprio inimitável – para o bem e para o mal.

O principal erro dos inimigos da integração europeia é considerar que ela é incompatível com as identidades nacionais distintas dos povos que a compõem. Unidos na diversidade, é o lema da União Europeia: não podia ser mais claro!

Ela deve ser uma integração solidária, em que os mais ricos e mais pobres convirjam para o bem de todos. Vale a pena lutar por este projecto, sábio já de 60 anos, portador de paz e prosperidade. A Europa é uma causa para os espíritos nobres.

Contra os lentos Curiácios.