O que mais vamos ouvir dizer é que o resultado deste referendo é reflexo do distanciamento entre cidadãos e União Europeia e demonstra o quão necessário é que a UE atenda às preocupações dos seus cidadãos. Mas o que é que isso quer dizer exatamente?

Para perceber que, na verdade, isso nos diz (e ajuda) muito pouco basta pensar na diferença entre a crítica dominante à UE no Reino Unido e em Portugal. Os britânicos estão preocupados com o que contribuem para a solidariedade europeia, os portugueses estão preocupados com a pouca solidariedade europeia. Em Portugal várias vozes à esquerda virão agora defender que este referendo torna claro que se tem de reverter o Tratado de Estabilidade e reforçar os instrumentos de solidariedade. Mas em boa parte do norte da Europa a reação vai ser dizer que isto demonstra a necessidade de se aplicarem seriamente as regras do Tratado de Estabilidade e que não se deve promover uma União de transferências (como designam o reforço da solidariedade).

Quando se diz que a União Europeia não responde aos anseios dos cidadãos europeus esquece-se, com frequência, que esses anseios são, por vezes, totalmente opostos. O problema europeu é, portanto, outro: o de não oferecer um espaço político capaz de reconciliar esses anseios ou fazer os compromissos necessários entre o que anseiam os diferentes cidadãos europeus.

Para que a União Europeia consiga responder a este desafio é necessário começarmos por perceber que os desafios que enfrentamos não decorrem da UE mas sim da interdependência em que vivemos. Um mundo económica, social, ambiental e culturalmente integrado traz-nos muitas vantagens. Mais e melhores produtos e serviços, e mais baratos, ou maior liberdade de circulação de pessoas e ideias são apenas dois exemplos. Mas, neste mundo, somos crescentemente interdependentes. A crise financeira de um país comporta riscos para vários países. Um afluxo de refugiados num país transfere-se facilmente para outro. A ausência de controlos ambientais adequados num Estado pode ter um impacto ambiental terrível noutros Estados. Esta interdependência tem profundas consequências políticas. Significa que o que decidem as outras democracias nacionais tem impacto em nós e vice-versa. A política fiscal dos outros Estados afecta a capacidade competitiva das nossas empresas e, logo, a nossa capacidade de atrair investimento. Da mesma forma, se queremos ter confiança nos produtos e serviços que trocamos, temos de ter alguma harmonização dos critérios a que esses produtos e serviços estão sujeitos e isso exige estar disposto a negociar esses critérios com os outros. A ideia de que, neste mundo interdependente, podemos continuar a decidir sozinhos é falsa, puramente artificial.

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O problema é que a prática política dominante em vez de contribuir para tornar transparente esta realidade alimenta-se desse artifício. Faz-se política nacional como se não fossemos interdependentes, gerando expectativas nos cidadãos que, no entanto, só essa interdependência pode garantir. Quando as expectativas não se cumprem culpam-se os outros de que dependemos para as cumprir… O populismo assenta no pressuposto de que seria possível ter todos os benefícios deste mundo interdependente sem termos que negociar essa interdependência.

Os apoiantes do Brexit foram eficazes em preservar esta ficção ao mesmo tempo que se alimentavam da insegurança que domina grande parte da sociedade britânica (e europeia). O Brexit ganhou porque a insegurança do status quo foi superior à incerteza das alternativas. Essa insegurança domina hoje uma fatia substancial dos europeus. Um erro das elites europeias tem sido o de presumir que a sua mundividência é a dos outros: que todos estão conscientes do mundo interdependente em que vivemos. Muitos europeus vivem num mundo globalizado mas com uma concepção do mundo ainda profundamente dominada pelo local. Neste contexto, é normal que a reação instintiva à crescente insegurança económica, social e mesmo física seja um regresso às fronteiras familiares onde se presume poder reconstituir a proteção perdida. Na verdade, essa não é a resposta, como os britânicos irão descobrir. Mas o regresso desse nacionalismo é a reação normal à erosão do contrato social, num contexto em que a política nacional continua a ser praticada como se não fossemos interdependentes e, na verdade, tirando até partido dessa ficção para ter ganhos políticos ou transferir responsabilidades.

É a conjugação entre o medo social dominante e os profundos problemas estruturais das nossas democracias nacionais que nos trouxe aqui. O referendo do Brexit foi apresentado por muitos como a sujeição da UE à democracia no Reino Unido. Na verdade, é antes mais um exemplo dos profundos problemas das democracias nacionais de que a UE é mais vítima do que culpada.

O principal problema democrático do referendo sobre permanecer ou não na Europa é que ele assentava numa falsa escolha. Boa parte do campo do Brexit, ao mesmo tempo que defendeu a saída, apresentava como alternativa um acordo com a União Europeia semelhante ao da Suíça ou a Noruega (no EEA). Só que a existência dessas alternativas é algo que não depende apenas deles… Não é claro que a UE esteja disposta a oferecer ao Reino Unido o mesmo regime que se aplica à Suíça ou à Noruega. O que é claro é que a posição negocial do Reino Unido será agora bem mais frágil na negociação desse regime. E o Reino Unido terá de ceder o necessário para obter o acordo desses 27 Estados-membros (alguns deles com interesses bem antagónicos ao que os que defendiam o Brexit pretendem). Talvez ainda mais irónico é que, mesmo que o Reino Unido obtenha essas alternativa desejadas, elas implicam, na prática, manter tudo o que detestam da União Europeia mas já sem voz para o contestar: da sujeição à legislação europeia e primado do Tribunal de Justiça Europeu à liberdade de circulação de pessoas (a Suíça até pertence ao Acordo Schengen…).

A saída do Reino Unido é má para a União Europeia e para o Reino Unido. A UE perde diversidade e abre-se um precedente perigoso. O Reino Unido irá descobrir que a verdadeira causa dos seus problemas e ansiedades não é a Europa mas a incapacidade da sua democracia nacional em adaptar-se a um mundo interdependente. Não será regressando ao nacionalismo e protecionismo que responderá aos desafios da globalização.

A progressiva desintegração europeia continuará até percebermos que o que impede a UE de responder eficazmente aos desafios que enfrenta é, ironicamente para quem é acusado de colocar em causa as democracias nacionais, a incapacidade das democracias nacionais responderem aos seus… Só se a União Europeia encontrar neste choque o impulso para contribuir para reorganizar a política e democracia na Europa (e não apenas na União Europeia) é que ainda pode vir a salvar… os Estados. Não se enganem, são os Estados e as suas democracias nacionais que, em última análise, estão em causa neste processo. A integração europeia começou, depois da Segunda Grande Guerra, como um instrumento para salvar o Estado dos excessos do nacionalismo. O desafio de hoje é o de continuar a cumprir essa missão num mundo bem diferente.

Miguel Poiares Maduro é professor universitário e ex-ministro Adjunto