Os poetas serão medíocres, mas Portugal é um país de filósofos. O mais antigo testemunho é o fragmento do poema filosófico anónimo conhecido entre os escolares por ‘Não há condições.’ Nesse poema conta-se a história de um herói que se caracteriza por não fazer absolutamente nada. Sempre que se lhe oferece uma oportunidade de fazer qualquer coisa o herói recita o refrão por que o poema é ainda hoje famoso. ‘Não consegui atravessar a rua,’ explica, ‘não havia condições;’ ‘não matei o monstro,’ admite, ‘por falta de condições.’

Uma versão musicada do refrão é ainda hoje cantada nas urbes e nas orbes. Dado que Portugal também não é um país de músicos a partitura tem deficiências; mas serve perfeitamente. Com efeito, o propósito do refrão é sobretudo filosófico. O objectivo do poema filosófico ‘Não há condições’ é o de oferecer uma explicação para o facto de nunca se poder fazer absolutamente nada. A explicação consiste em alegar a falta de condições.

Precisamos de definir um pouco aquilo que de acordo com os filósofos constantemente acontece faltar em Portugal. Uma condição é qualquer coisa sem a qual qualquer outra coisa não se verifica. Um exemplo é a existência de manteiga em relação à actividade conhecida por comer pão com manteiga. Quando não há manteiga não há qualquer modo técnico de se conseguir comer pão com manteiga. As razões não são culinárias ou aliás portuguesas. No mundo único que os portugueses partilham com os outros animais só é possível comer pão com manteiga se houver manteiga. Quando não há manteiga não há condições.

O nosso herói tem no entanto outras ambições filosóficas, e maiores. Quando canta ‘Não há condições’ não se refere apenas ao caso trivial da manteiga; refere-se a todos os casos imagináveis. Como o seu objectivo é explicar por que não faz absolutamente nada, e não o fará em qualquer circunstância que se venha a verificar, a sua teoria tem de ser a de que, por definição, nunca há condições. Não pode, por distracção ou bondade, admitir qualquer situação em que possa haver condições.

Daqui se conclui que a teoria mais antiga da tradição filosófica portuguesa não é apenas a da falta de condições. De facto, para nunca poder haver condições não pode haver nada neste mundo. O mundo do nosso herói ancestral não é apenas um mundo a que falta ocasionalmente a manteiga; é um mundo sem ruas, sem números, sem monstros e sem pessoas; um mundo a que falta tudo. Só quando falta tudo é que garantidamente nunca pode haver condições. A originalidade do mais antigo poema filosófico português consiste assim em sugerir a rara descrição de um mundo sem nada lá dentro, embora habitado do lado de fora por uma multidão de portugueses com inclinações filosóficas.

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