Andamos por estes dias numa espécie de drôle de guerre entre o Governo de António Costa, o nosso grande azar recente, e a União Europeia, com declarações inamistosas de um e outro lado e pequenas escaramuças aqui e ali, à espera do pior que inevitavelmente se seguirá. E andamos também, de novo, com muitos, muitos feriados e muitos, muitos impostos, alguns deles para afugentar vícios dos quais infelizmente padeço, e à espera de novos e imaginativos meios de extrair tostões que fatalmente virão. Em resumo: maus tempos para o moral e a carteira.

Num dia destes, com o espírito ocupado por estas lúgubres reflexões, dei comigo a pensar que os génios que nos governam, aqui e noutros lugares, bem os seus apoiantes mais gritantes, devem desprezar do fundo do coração as pessoas comuns. Não tenho obviamente nenhum mandato para representar os indivíduos que caem dentro desse algo equívoco conceito, e falta-me, sem dúvida, o dom de uma intuição mística que me permitiria alcançar a essência da pessoa comum. Mas, mesmo com estas limitações, não é difícil descobrir alguns traços afectivos que a grande maioria das pessoas partilha e que parece merecer a mais altiva desconsideração por parte dos nossos pastores e pastoras, pastorinhas e pastorinhos, de verbo fácil e dedo esticado.

Tomemos o caso dos migrantes. Se fosse necessário eleger o desastre humanitário por excelência dos nossos dias, seria sempre um muito bom candidato ao primeiro lugar. Não passa praticamente um dia em que não se afoguem, vindas de paragens inóspitas e sangrentas, dezenas e dezenas de pessoas que buscam na Europa melhor sorte e melhor futuro. A reacção espontânea face a essa tragédia é certamente de piedade e de urgência de ajudar. Mas, ao mesmo tempo, a grande, grandíssima, escala da migração, provoca medo. Não falo do medo do terrorismo, embora a questão, não imediatamente mas no futuro, e num futuro não muito longínquo, esteja longe de ser tão despicienda quanto se pretende. Falo do medo da alteração do modo de vida que uma vaga maciça de gente vinda de culturas completamente diferentes da nossa provoca.

Não digo que esse medo não seja, aqui e ali, explorado politicamente. Resta que ele existe independentemente dessa exploração. E que ele não pode ser automaticamente apontado como sinal de xenofobia, ignorância e racismo. Pessoalmente, considero o racismo (como coisa distinta do não apreciar certas culturas, uma diferença que em tempos Lévi-Strauss salientou) o pecado por excelência. Mas estou muito longe de ver racismo no grosso das pessoas que, face à vaga migratória, experimentam medo e querem criar-lhe obstáculos. Os nossos pastores e os seus porta-vozes mediáticos não têm geralmente o cuidado destas distinções. Para eles, tudo é racismo, xenofobia, ódio ao outro, e por aí adiante. O que as pessoas comuns sentem não lhes diz respeito. Pior: merece-lhes apenas a condenação e o desprezo dedicados aos ignorantes manipuláveis. Divórcio absoluto.

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Outro exemplo. As reacções negativas de certos povos, como exemplificada no Brexit, face à União Europeia. Também aqui estou dispostíssimo a admitir que possam existir péssimos motivos para essas reacções, e nem me é difícil descobrir um ou outro bom exemplo disso. Mas tais reacções não se esgotam nesses maus motivos. Elas resultam, em grande parte dos casos, de um problema muito real e efectivo que só uma cegueira militante pode considerar um pseudo-problema mal colocado e politicamente inspirado por sentimentos condenáveis: o problema da soberania. Goste-se ou não (e nestas matérias o gostar-se e o desgostar-se deve muito enfaticamente passar para segundo lugar, em benefício da atenção à realidade), os povos estão habituados a imaginarem-se soberanos, e essa soberania, por mais precária que seja na prática, é um elemento poderoso na coesão das sociedades. Nem devia sequer ser preciso ser-se “soberanista” para o reconhecer: é um dado palpável que a mera atenção à vida das sociedades, mesmo para um “europeísta” que não seja maluco, revela ao primeiro olhar.

Ora, o movimento centrípeto da União Europeia tende a destruir as condições básicas desse elo social. E, concomitantemente, a criar um movimento centrífugo que, ainda por cima, inclina a fazer com que o prévio patriotismo degenere, ou possa degenerar, em nacionalismo mais ou menos exacerbado. Isto não é uma crítica da União Europeia enquanto tal, mas de uma tendência dominante que ficou bem à vista na reacção ao Brexit. A incrível altivez da atitude das autoridades europeias (Jean-Claude Juncker é simbólico disso e de mais uma ou outra coisa) mostra perfeitamente a radical separação dos nossos pastores em relação às crenças das pessoas comuns. Elas não contam, não sabem o que fazem, não merecem respeito. E o desprezo revela uma absoluta falta de consciência das várias trapalhadas (em lugar de destaque, o euro) que presidiram à “construção europeia”. Em tudo isto, e os exemplos que dei são gotinhas num oceano, o que me surpreende mais é mesmo a falta de respeito. A falta de respeito pelas crenças, pelos hábitos, pelos modos de vida e pelas paixões das pessoas. Como se tudo fosse descartável no grande caminho para o Bem.

Talvez improvavelmente, uma recente dieta cinematográfica de westerns fez-me lembrar a atitude inversa. Os actores mais emblemáticos do género (John Wayne, Jimmy Stewart e até Randolph Scott nos filmes dirigidos por Budd Boetticher com o grande argumentista e escritor de diálogos Burt Kennedy) representam em geral uma atitude de respeito pelas crenças dos outros. (Clint Eastwood é assim em praticamente todos os filmes por ele realizados em que entra como actor, westerns ou não.) Não é que forçosamente partilhem as crenças dos outros, e há até um certo cepticismo que é de regra, até porque é indissociável do individualismo. Pode mesmo encontrar-se, embora muito raramente, uma pontinha de cinismo. Mas a situação de proximidade do estado de natureza, o sentimento de precariedade da comunidade humana, obrigam a essa compreensão do outro e a esse respeito pelos seus sentimentos que presidem às decisões morais. Os melhores westerns são os filmes onde as questões morais se encontram melhor colocadas. Quando John Wayne, numa cena memorável do Rio Bravo de Hawks, explica a um Dean Martin irritado com as muitas palavras atrapalhadas e auto-justificatórias de Walter Brennan, que por erro quase alvejara Martin, que se Brennan não se calava era porque o ia matando e estava com medo, e Dean Martin devia perceber isso, resume essa característica na perfeição.

Enfim, não pretendo que o retorno ao Oeste seja a solução para os nossos problemas, até porque a transformação de Jean-Claude Juncker em John Wayne é eminentemente improvável. Mas um pouco mais daquele tipo de decência talvez ajudasse a contrariar esta particular falta de respeito, feita de ignorância doutoral e de arrogância mal disfarçada, que anda a tomar conta dos nossos tempos.

PS. No artigo da semana passada, escrevi que o grupo que infiltrara o Partido Trabalhista se chama Millennium. Atribuindo puerilmente um sentido ao lapso, concluí que a minha cabeça devia andar a pensar no milenarismo costumeiro de algumas seitas radicais. Não se chama nada assim, é claro: é Momentum.