A gula, um desregramento no comer e beber, é um vício feio que atenta contra a saúde do próprio e contra a solidariedade devida aos outros homens que passam fome. É condenada, por imperativo moral, em quase todas as grandes tradições religiosas, no Hinduísmo, no Islamismo e no Budismo. No Cristianismo é mesmo considerada um pecado, uma ofensa a Deus; e não só pecado, mas pecado capital “porque gerador[a] doutros pecados e doutros vícios” (Catecismo da Igreja Católica, n.1866). Moralistas de todos os séculos condenaram-na como desregramento que conduz à autoindulgência, à ira, à preguiça e à luxuria, e como o vício que mais nos rebaixa à condição de animais irracionais. Na edição ilustrada da Doutrina Cristã do Pe. Marcos Jorge s.j. (1524—1571), publicada em Augsburgo em 1616, a gula é representada por uma repelente figura obesa e por um porco, e conduzindo ao desregramento sexual.

Sendo o Estado português pretensamente laico e não confessional, não seria de esperar que legislasse comportamentos, sejam alimentares, financeiros, sexuais ou laborais, ou que começasse uma campanha contra pecados como a gula, a avareza, a luxuria ou a preguiça. É da essência da liberdade individual cada um ter autonomia, apenas restrita pelos legítimos direitos dos seus concidadãos e pelas consequências que os seus atos acarretam, para decidir como quer ser feliz e para prosseguir essa felicidade, mesmo que seja através de comportamentos social e moralmente condenáveis como comer arroz doce. No entanto, de modo restrito, mas concreto, é o que começou a fazer o governo com o Despacho 11391/2017 de 19 de dezembro, em que se proíbe a venda, em edifícios do Sistema Nacional de Saúde (SNS), de uma longa lista de alimentos que excitam a gula dos portugueses.

Podia-se esperar que esta proibição tivesse um fundamento económico. Se a gula, especialmente a gula por pasteis de bacalhau, faz mal à saúde, o Estado, como prestador de serviços de saúde abaixo do custo teria interesse, mas não o direito, em restringir a dieta dos portugueses para que estes, mais saudáveis, não necessitassem de recorrer tanto ao SNS e, deste modo, o buraco orçamental que é este Serviço não se agigantasse mais. Poder-se-ia perguntar se o Estado Social não estaria assim a ser semente de um Estado Totalitário, mas isso é outro assunto.

Aliás, o Estado teria interesse não só em restringir a gula, mas também todos os outros comportamentos lesivos das finanças públicas. O que já faz, por exemplo, em relação à avareza, taxando pesadamente os rendimentos e património dos portugueses. Mas ainda está aberto um vasto campo legislativo no combate a outros vícios com impacto no Orçamento de Estado, como por exemplo a preguiça. E, por motivos de consistência, também a luxúria. Esta é causa de patologias físicas e psíquicas que também têm impacto negativo nos orçamentos hospitalares, e não infrequentemente é causa de divórcios, com o consequente insucesso escolar de inúmeras crianças e adolescentes, tudo com expectáveis impactos negativos na produtividade, crescimento económico e equilíbrio orçamental a longo prazo. Seria, portanto, de esperar que, caso a motivação do Despacho acima referido fosse económica, então, por coerência, também fosse vedada não só a distribuição, mas também a venda, de anticoncetivos em hospitais e centros de saúde. De um ponto de vista económico e orçamental não é consistente proibir a venda de chamuças ao mesmo tempo que se distribuem preservativos.

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Mas a justificação dada na referida peça legislativa não é económica, mas moral: o Estado pretende promover, através de várias medidas, a “alimentação saudável” mesmo que isso custe a felicidade a milhões de portugueses para os quais a maior alegria nesta vida é degustar um rissol com uma cerveja. Para além de ser questionável que um estado democrático queira impor a uma grande minoria religiosa da sua população, para quem o ventre é o seu deus, códigos alimentares que vão contra as suas convicções mais profundas, é também duvidoso que consiga algo com isso, mais de que aborrecer vendedores e consumidores, sem a criação de uma poderosa polícia de costumes. Há séculos que se sabe que, mesmo com repressão, legislar sobre costumes não resulta na melhoria destes, a não ser que haja exemplo de cima:

“O Mestre [Confúcio 孔子, 551—479 a.C.] disse: Dirigi o povo com leis e disciplinai-o com penas e ele as evadirá e não terá vergonha disso. Liderai-o com o exemplo e mantei a ordem com ritual [isto é, boas maneiras] e eles terão vergonha e se corrigirão a si mesmos.” (Analectos 2,3)

O que levanta a questão: será que o sr. ministro legisla porque não lidera pelo exemplo? Será o sr. ministro guloso? A avaliar pelo seu perfil abdominal a suspeita adensa-se.

E se uma “alimentação saudável” é um objetivo prioritário do Estado, porque é esta medida restrita aos hospitais? Porque não proporcionar as suas vantagens também a todo o funcionalismo público? Não será de alargá-la a todos os restaurantes, cantinas e bares dos equipamentos públicos, aos ministérios, às autarquias e ao parlamento?

E já agora, num esforço moralizador e profilático da política nacional, não será de acrescentar ao Regime jurídico de incompatibilidades dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, um artigo com “impedimentos dietéticos”, proibindo na alimentação dos nossos dirigentes todos os alimentos incluídos no Despacho 11391/2017? O povo quere-vos sóbrio e cheio de saúde, sr. ministro.