É preciso perceber um país por dentro, nos seus anseios históricos e preconceitos internos, para perceber a sua política externa. A Índia não só não é exceção, como é um estado que evidencia valores muitíssimo diferentes dos do Ocidente, e que o Ocidente nunca se preocupou muito em compreender. E o resultado é uma relação de confiança permanentemente adiada, principalmente com os Estados Unidos, vistos pela maioria dos indianos como o estado imperial que sucedeu à Grã-Bretanha. Se por um lado já não há império formal, Washington usa o seu poder desmesurado para controlar vários pontos do globo – incluindo a vizinhança indiana. Por outro subsiste do ressentimento dos double standards. Deli queixa-se, a quem quiser ouvir, que apesar de ter sido a única democracia do sudeste asiático durante décadas, os EUA nunca lhes estenderam as deferências que estenderam a outras democracias.

Assim a política externa da Índia para os Estados Unidos, até hoje, pode ser resumida em três R: Ressentimento, Reciprocidade e Reconhecimento. Ressentimento, pelas razões já explicadas acima. Até prova em contrário, os EUA não são dignos da confiança indiana. Esta posição é reforçada por um sentimento que oscila entre a esperança (que os Estados Unidos um dia reconheçam a grandeza moral e agora económica da Índia) e o ressentimento por isso nunca ter chegado a acontecer. Segundo um politólogo indiano, este sentimento assola cerca de 70 por cento da população e uma parte significativa da elite.

O que nos leva ao segundo ponto: a reciprocidade. Desde os tempos de Nehru, que a elite indiana não aceita menos do que ser tratada diplomaticamente em pé de igualdade por qualquer estado, pequeno ou grande. Claro que este conceito entra em contradição com a hegemonia regional indiana. Mas se tiverem dúvidas, lembrem-se do incidente diplomático gerado pela administração Obama quando, logo no início do primeiro mandato, o presidente americano quis mandar Richard Holbrooke como representante especial para a Índia, o Paquistão e o Afeganistão. A diplomacia indiana recusou sem apelo nem agravo ser parte de um pacote de estados pária. E até à visita de Obama ao país a convite do recém-eleito primeiro-ministro Modi para a celebração do Dia da Independência, em janeiro de 2015, a frieza das relações entre os dois países manteve-se.

Ainda assim, Obama poderia ter tirado maior partido da visita. Não resistiu a admoestar Deli pela sua falta fraca participação nos acordos climáticos (ainda não havia Acordo de Paris), um assunto sensível para a Índia, que por um lado ainda tem que ter como prioridade a luta contra a pobreza (22 por cento da população vive abaixo do limiar), mas deseja, ao mesmo tempo, ser considerada uma grande potência – e acredita que o merece devido ao seu comportamento internacional impecável e à sua tentativa (também desde os tempos de Nehru) de intervir no sistema internacional de uma forma construtiva. Este reconhecimento é, desde Nehru, um imperativo que a Índia também nunca viu satisfeito.

Tendo em conta estes princípios, deve considerar-se a visita de Narendra Modi à Casa Branca um sucesso? As visitas de estado valem o que valem. Só se tornam verdadeiramente importantes se tiverem com consequências. Mas Trump parte com vantagem relativamente aos seus antecessores. O BJP é nacionalista (Hindu) e é conhecido por ser mais pragmático relativamente a Washington que o Congresso (o partido antecessor). Trump e Modi são ambos vistos “homens fortes” (em sentido crítico) e nenhum deles parece particularmente interessado em manter ou expandir a ordem internacional liberal. Modi também prefere acordos comerciais bilaterais, ainda que esteja na tradição indiana usar organizações internacionais como elemento de afirmação política. A India de Modi e a América de Trump têm um inimigo comum, a China, que ambos estão interessados em conter, e Washington e Deli vêm o terrorismo como uma ameaça permanente.

Mas é só um começo. A ausência de declarações conclusivas e o facto de se terem evitado assuntos mais delicados são indícios que nada de essencial mudou. O que cria uma oportunidade para a Europa, até porque Modi também veio a Portugal, que pode bem ser uma porta de entrada para uma parceria maior. Mas será difícil aproveitá-la se não percebermos que alguns dos preconceitos indianos também se aplicam à Europa. É preciso perceber que há valores enraizados noutras sociedades que são verdadeiros entraves a uma diplomacia eficaz. E que Índia tem cada vez mais poder negocial.

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