“Mas que prémios todos são estes? Estão sempre a dar prémios. Melhor Ditador Fascista: Adolf Hitler!”
Woody Allen em Annie Hall

A crítica de Woody Allen a Hollywood dos anos 70 pode agora ser estendida ao resto do mundo. Vivemos na Era dos Prémios e ei-los para todos os gostos: desde o melhor CEO de uma empresa de telecomunicações ao melhor pastel de nata de Lisboa. É esta recente importância superlativa dos prémios que explica o choro descontrolado do Cristiano ao receber a sua bola de ouro e a verdadeira loucura mundial pelas estrelas Michelin.

Não é preciso ler Baudrillard para perceber o fenómeno. Desde o Renascimento que os cânones que estabeleciam a bitola da cultura, bom gosto e qualidade estavam definidos e bem padronizados. Se a melhor seda e o melhor sapateiro eram os que fossem escolhidos pelo Rei de França, na estética, que é sempre o ramo mais volátil porque mais subjetivo, a coisa não era muito diferente. Como notou Madame de Staël, na cultura dos salons do século XVIII todos sabiam citar Plutarco. Obviamente que este padrão comum não evitava discussões e grande acrimónia sobre questões de valor. Num dos seus raros momentos humorísticos, Rousseau conta como teve de ser protegido pelos amigos de ser esfaqueado em Paris por ter elogiado a ópera italiana e criticado a francesa. Mas todas as opiniões, mesmo que organizadas em fações, por vezes armadas com facas, podiam ser argumentadas e cotejadas com os cânones. Isso permitia hierarquizá-las, de más para boas, numa estratificação sempre móvel mas auto-reforçante. Em suma: não era concebível, nem necessária, a atribuição de prémios para “certificar” o que tem valor.

Tudo mudou com a democratização do gosto e da cultura (que não da alta cultura, como mostrou Bourdieu). Conjugado com a produção em massa, a avalanche de informação e a “opinião democratizada” e pragmática, o ser humano tornou-se mais opinativo mas perdeu as referências que estribavam essa opinião. Cada um tem agora a sua opinião e ela vale tanto como a dos outros. O lema “os gostos não se discutem” encapsula bem o estado de coisas. Realmente, discutir com base em quê e com quem? Daí à ascensão dos prémios foi um passo. É como se a selva opinativa visse descer um carimbo de validade dos céus, que anuncia ao mundo “está aqui o melhor!”. Por isto chorou Ronaldo, que “passou” ali a ser, no momento em que foi lido o seu nome, o “Melhor Jogador do Mundo”. O mais interessante é notar que a materialidade do prémio tem a virtude de obnubilar que por trás estão apenas as opiniões de uns quantos. Imagine-se o seguinte: em vez de anunciar a atribuição de um prémio, dizia-se apenas que, na opinião informada de dez ou vinte pessoas (os mesmos que decidem o prémio), ficou decidido que x era a melhor coisa na categoria y. Seria alvo de chacota ou, mais provável, simplesmente ignorado.

É claro que há prémios “melhores” do que outros. O mesmo é dizer, mais cobiçados por terem mais “valor”. O valor de um prémio, ele próprio atribuidor de valor, advém da notoriedade da sua marca, como gostam de dizer os publicitários. Esta notoriedade é conferida pela sua longevidade, como os Óscares, o Pritzker, a Medalha Fields e as estrelas Michelin, e pela notoriedade da organização que “empresta o nome” ao prémio. Assim, um prémio atribuído pelo Financial Times tem mais valor que um prémio atribuído pelo El Mundo. Mas se este já existir há muitas décadas e o outro há poucos meses, a coisa pode inverter-se. Sintonizando o ar dos tempos, é possível antecipar que vamos ter, dentro em pouco, um prémio para o melhor prémio.

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A correlação entre valor e longevidade é interessante porque revela um mecanismo de feedback: a atribuição de um prémio confere valor e esse ato reflete-se de volta no prémio, que ganha ele próprio valor. A quebra deste círculo virtuoso abre a porta ao maior medo da indústria dos prémios, que é a queda na irrelevância. Pensemos na Miss Universo ou na Comenda da Ordem de Mérito. Evitar a irrelevância implica, por um lado, a capacidade de surpreender e, por outro, a anuência do objeto que foi distinguido pela maioria (ou pelo menos, o seu não repúdio generalizado). Estes dois princípios convivem em tensão, já que uma grande aceitação pode implicar demasiada previsibilidade e, inversamente, muita surpresa pode ser mal aceite.

Assim se explica a atribuição do Nobel a Bob Dylan. Depois do faux-pas do ano anterior, com uma grande surpresa chamada Svetlana Alexijevich, que foi largamente ignorada, cabia agora regressar a uma escolha segura ou surpreender ainda mais mas, desta vez, sem cair no desinteresse. Ao optar pela segunda via, a Academia contou com a falange de fãs do cantor para impedir o repúdio generalizado e, aparentemente, está a ter sucesso. Mesmo que para isso tenha sacrificado o próprio título do prémio (ou seja, o seu objeto) e, desta forma, a sua razão de ser.

Advogado