Nos últimos dias tem-se discutido muito se a “fat tax” é ou não eficaz para a saúde pública. É uma falsa questão. Ninguém está interessado na eficácia da taxa ou na salvação dos gordos. A prova é que, à semelhança do tabaco, o imposto há-de ser suficientemente alto para gerar receita mas não tão alto que torne o vício proibitivo. Não espanta: se os gordos e os fumadores abandonassem o vício, o consumo quebrava e a receita descia. Haveria crise na indústria e desemprego. Não pode ser. Esta taxa é uma extorsão calculada, não é uma manifestação de fascismo sanitário. Os discípulos de Frank que vagueiam à solta pelos corredores do Ministério da Saúde, a sonhar com maneiras de nos fazerem morrer esbeltos, despoluídos, radiosos e louros, não foram tidos nem achados para esta taxa e, de resto, são genericamente contra ela.

Não. Quem inventa estas taxas quer, simplesmente, cobrar. Cobra agora sobre o açúcar como, antes, cobrou sobre o tabaco e, amanhã, cobrará sobre a gordura, o álcool ou os enchidos. Não o faz porque queira saber da nossa saúde mas porque sabe que é popular. Não há governo nem maioria que não adorem legislar sobre a nossa saúde e taxar os nossos vícios porque nada é mais consensual do que taxar comportamentos. Já o califa de Granada cobrava aos cristãos e judeus que quisessem viver no seu território, e o mesmo fez mais tarde o rei português aos judeus e mouros de Lisboa. Noutros tempos pagariam os homossexuais e os comunistas. Agora pagam os gordos e os bêbados.

Nos idos de 1950, a ficção científica americana descobriu uma vocação para a distopia com autores como Philip K. Dick e C. M. Kornbluth. Kornbluth morreu cedo e Philip K. Dick afundou-se nas drogas mas, antes, ambos escreveram meia dúzia de histórias que valem a pena. Recordo duas em particular: The Man Who Japed, de Philip K. Dick, publicada entre nós pela Europa-América com o título O Profanador; e The Space Merchants, de Frederik Pohl e C. M. Kornbluth, por cá editado com o título Os Mercadores do Espaço, na velhinha colecção Argonauta (foi o número 188). Ambas as histórias retratam sociedades onde os cidadãos foram reduzidos ao papel de consumidores, alienados às mãos de uma elite sem escrúpulos pela manipulação dos media, num caso, e das agências de publicidade, no outro.

O tema não era particularmente original. A crítica da alienação das massas, em diversas versões, faz parte do reportório da esquerda desde o século XIX e continua popular no século XXI. Mas o que me faz impressão é o seguinte: os radicais continuam a comover-se regularmente com a suposta transformação dos cidadãos em consumidores (a mando do Capital), mas ninguém parece comover-se com a sua evidente transformação em contribuintes (a mando do Estado). E, no entanto, estamos muito mais perto deste pesadelo do que do outro. É essencialmente para pagar que existimos: pagar a segurança social, pagar o défice, pagar estádios de futebol, pagar subsídios a “autores” de quem nunca ninguém ouviu (nem quer ouvir) falar, pagar concursos para infra-estruturas e serviços que nunca vimos.

Nas histórias de Philip K. Dick e de C. M. Kornbluth, os cidadãos acabavam por revoltar-se contra as élites. E nós?

Médico

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