Maria começa um diário de memórias aos sessenta anos. Era um sonho antigo. Nunca tivera vida para escritas, nem o tentara antes. É hoje avó de duas meninas. Quando o filho nasceu, era ainda uma rapariga; criou-o sozinha. Agora, quer deixar-lhes a história da sua vida, contada na primeira pessoa. Senta-se à mesa da cozinha e tenta passar para o papel o que lhe vai na alma, mas o pensamento vai em muitas direcções.

Arrisca escrevê-las com palavras que não tem a certeza de como se escrevem, descobrindo uma caligrafia que desconhecia em si. Mudou tanto desde o tempo de escola. Ela, que tem a mania das arrumações, fica exasperada ao ver a letra arredia, toda encaracolada e rebelde. Às vezes, não consegue ler o que escreveu; questiona-se se ainda irá a tempo de ficar bem desenhada a vida que julgava uma linha recta. Senta-se para escrever das nove às dez da manhã, altura em que uma cadela velha da vizinhança ladra à sua janela. Espera a bolacha de água e sal que lhe lança do segundo andar, enervando um pouco a dona do animal, que lhe sai disparado de casa em direcção à bolacha, e que anda mal da barriga por causa das guloseimas. Maria faz de conta que não ouve a amiga. Senta-se de costas para a janela para não se distrair com o balanço vivo das copas das árvores, que por mistério embala o silêncio do sentido da vida.

À frente do caderno, Maria avança e recua com a caneta; não sabe por onde começar. No dia do casamento com Andrade? No dia em que morreu? Na saia plissada que a mãe coseu para ir à missa? Quando ficava de castigo? Quando rezava a Santa Rita? Tem a impressão de que tem tudo para dizer, mas não sabe como é que isso se faz. É como espremer uma laranja. Tanto sentido, tanto silêncio.

Um dia o seu filho lerá o diário de Maria. Numa fotografia de quando tinha apenas um ano, a mãe parece ainda uma menina. Apercebe-se de que nunca se deteve no facto de ela ter sido jovem, julgando-a desde sempre adulta e madura. Quando deu por si, era mais velho do que ela era quando ele nasceu; e de repente já estavam ambos no caminho da velhice. Onde é que havemos de nos esconder se estivermos destinados a crescer à frente de outra pessoa? A juventude passou num instante. Enquanto durou, era um muro alto para lá do qual não se via nada. Saltado o muro, uma pessoa já não se lembra se ao saltar magoou os joelhos, nem saberia dizer se caiu mal: apenas que não consegue saltar de novo para trás.

A pouco e pouco, com a passagem dos meses, vai sendo mais fácil escrever o diário. Maria já não se distrai tanto — anda toda contente com o seu projecto. Folheando o caderno, vejo que usou uma folha pautada para manter as linhas direitas, e que escreve por temas, mudando de assunto e de ano com alguma coerência. Não usa uma única metáfora: escreve numa linguagem directa e corajosa. As linhas são muito aprumadas, e a letra menos rebelde: o caderno vai-se parecendo cada vez mais com a sua casa. Mas à margem, há florinhas e ramagens, pequenos triângulos, círculos com olhos, nariz e boca, uma ou outra palavra escrita em maiúsculas rabiscada em momentos de distracção, ou quando a escrita lhe custava mais, ou quando o ladrar da cadela nunca mais aparecia, resgatando-a de um suplício que se foi tornando uma alegria. É um bordado de liberdade, que a embaraça: Maria preferia ter um diário imaculado.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse Cabelo (Teorema, 2015).

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