A moral e a razão são duas coisas diferentes, mas que têm vindo cada vez mais a ser colocadas em planos idênticos, ou mesmo com a última a tentar sobrepor-se à primeira.

A moral é um fenómeno emergente, não é uma construção racional da mente humana, não é um produto da nossa vontade consciente. Muitos dos preceitos e regras da moral são proibições implícitas ou explícitas, do género “não deves” fazer isto ou aquilo, que vão contra os nossos instintos básicos, e que, exactamente por isso, racionalmente, voluntariamente, nunca escolheríamos. Como dizia Friedrich Hayek, a moral selecionou-nos, não fomos nós que selecionamos a moral. Neste sentido, a moral está para além da razão, não é um produto dela. A moral é como se fosse uma forma de conhecimento cristalizado nas tradições, hábitos e inclinações de indivíduos e sociedades, da mesma forma que há muito conhecimento cristalizado nos genes e moléculas de um organismo. Muitas das normas morais são absorvidas na infância e na juventude por imitação, não por adesão racional. Muitas dessas regras, inclusive, não são compreendidas e até podem parecer absurdas. Foi a superioridade num sentido muito amplo, económica, cultural, etc., das sociedades com determinadas regras morais que as impôs e que levou à sua disseminação para outros países e continentes. Fomos como que, sem darmos por isso, sugados para elas. O mesmo se pode dizer em relação ao capitalismo comparativamente ao socialismo. O primeiro foi selecionado, não tanto pela vontade consciente dos homens, mas pela evolução natural das coisas, porque o primeiro é muito mais efectivo em vários domínios, como, por exemplo, o económico, mas não só, embora o segundo seja racionalmente muito apelativo.

Vem isto a propósito de que um dos grandes conflitos que impregna a nossa sociedade, e eu diria mesmo todo o Ocidente, tem a ver com esta questão, isto é, com a tentativa de sobrepor a razão à moral, de misturar os dois planos e, em última instância, colocar a moral sob o domínio da razão. Fracassada a tentativa de derrubar o capitalismo pela via da alteração do modelo económico, está a ser seguida esta nova via, que, não há que ter dúvidas, pode conduzir a situações muito aberrantes, e, em ultima instância, vir a por em risco a nossa civilização tal como a conhecemos.

De modo nenhum quero com isto dizer que não possamos alterar a moral tradicional, ir modificando ao longo do tempo algumas das suas normas. Mas a arrogância, direi mesmo, a agressividade com que se deitam abaixo regras morais antigas que estão profundamente ligadas às nossas raízes culturais e ao desenvolvimento da nossa civilização, demonstra que os seus autores não têm consciência que estão a manipular coisas que, em larga medida, estão para além do nosso entendimento racional, e cujas consequências, pelo menos a longo prazo, não conseguimos prever em absoluto.

Ter consciência do carácter emergente da moral e também da sua relação profunda, para além do nosso entendimento, com o que fomos e somos em todos os aspectos, mesmo no económico, implicaria uma atitude em relação à moral muito mais prudente e uma abordagem mais ponderada, por tentativa e erro.

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Relacionada com tudo isto está a questão do papel da ciência na nossa sociedade. A ciência é um produto da razão, talvez o produto, por excelência, da razão. E a ciência passou de uma entre várias tradições culturais para se transformar na corrente de pensamento dominante na sociedade. Esta transição começou a acontecer no Iluminismo e prolonga-se até ao tempo presente. A ciência transformou-se na religião do nosso tempo. Quando se quer “arrumar” um debate sobre qualquer questão, como, por exemplo, sobre as chamadas “questões fracturantes”, algumas das quais têm a ver com a moral, invocam-se argumentos ditos “científicos”. E logo o assunto fica decidido e o debate terminado. Nada mais há a dizer. A supremacia absoluta da ciência é uma assumpção básica da nossa cultura.

Paul Feyerabend chamou a atenção para este facto no seu livro “Science in a free society”. Dizia ele: : “… the assumption of the inherent superiority of science has moved beyond science and has become an article of faith for almost everyone. Moreover, science is no longer a particular institution; it is now part of the basic fabric of democracy just as the Church was once part of the basic fabric of society. Of course, Church and State are now carefully separated. State and Science, however, work closely together”.

Este é um dos fenómenos mais importantes do nosso tempo. Vivemos na época em que o discurso racional, a ciência cartesiana, analítica, objectiva, tudo quer manipular, controlar, dominar. Como acontece com o movimento de um pêndulo, passou-se de um extremo, de uma cultura dominada por uma estrutura mítica ligada essencialmente ao Cristianismo, com os seus dogmas e mistérios obscuros e assumidamente insondáveis, para outro extremo, em que a cultura é dominada por uma estrutura mítica ligada ao racionalismo e à ciência objectiva, e que assume que todos os problemas podem ser definidos, formulados e resolvidos. A Idade da Razão trouxe consigo a ideia de que a complexidade das coisas é só aparente, e de que tudo é, em essência, simples, e que por isso pode ser conhecido, controlado, manipulado, submetido à nossa vontade.

Mas este papel que é atribuído à ciência é de uma enorme ingenuidade e reflecte uma enorme ignorância. Leva os “cientificamente iluminados”, como dizia Konrad Lorenz, ele próprio um cientista, a só valorizar o que é racionalmente compreensível ou cientificamente provado e a desprezar o enorme fundo de conhecimento e sabedoria que está cristalizado nas tradições de todas as grandes civilizações e religiões do mundo.

A vida não funciona assim. Há muitos fenómenos que ultrapassam a nossa capacidade de entendimento racional, e a moral é um deles. O discurso racional é apenas um dos modos de apresentar e examinar uma questão, para muitas situações de modo nenhum o melhor. A ciência cartesiana, analítica, está preparada para avaliar fenómenos simples, lineares, não fenómenos complexos. A própria ciência, por dentro, está a transformar-se e começa a admitir que não é a única nem a mais importante fonte de conhecimento, e que este pode ser alcançado, de formas igualmente ou até mais válidas, através de abordagens até há pouco rebaixadas para um plano secundário, como, por exemplo, por via das artes. Por outro lado, a objectividade absoluta já há muito que foi descartada pela própria ciência, porque o conhecimento depende tanto do observador como do observado.

Como declaração de interesses, quero esclarecer que sou ateia e que desde há várias dezenas de anos não tenho qualquer contacto com religiões. Mesmo assim, apesar desta ser a minha opção racional, o qualificativo que penso que melhor se me aplica é o de ateia católica, na medida em que a minha educação na infância e juventude foi dentro da igreja católica, e aquilo que se absorve nessas fases da vida é dificilmente racionalizável e torna-se indissociável do ser. Não pode haver dúvida nenhuma de que um ateu com origem noutras religiões será necessariamente diferente de um ateu de origem católica ou cristã. O mesmo se pode dizer de um Estado laico com raízes cristãs ou de um Estado laico com raízes muçulmanas ou de qualquer outra religião. São entidades diferentes, e não perceber isto talvez explique em parte as dificuldades no relacionamento com as comunidades muçulmanas dentro dos países ocidentais, em particular, em França, que se considera a si própria o Estado laico na sua essência pura, na sua existência objectiva. O Estado laico não é uma entidade abstracta, que se possa isolar do contexto concreto em que emergiu e se situa. Por outro lado, um Estado verdadeiramente laico teria que se distanciar de qualquer tradição cultural, mesmo da tradição racionalista, o que não sei se será um objectivo possível de ser alcançado.

Apesar da razão já não se encontrar na sua fase mais triunfante e incontestada, ainda há muito deslumbramento com ela em vários sectores da sociedade e da política, particularmente à esquerda. Isto torna-se visível na forma presunçosa e arrogante com que são confrontados modos de pensar tradicionais. Como disse Edgar Morin: “The pathology of reason is rationalization, which encloses reality in a system of ideas that are coherent but partial and unilateral, and do not know that a part of reality is unrationalizable, and that rationality’s mission is to dialogue with the unrationalizable”.