No seu último número, a revista francesa Philosophie Magazine (maio, 2016), contém um trabalho especial com o título: nómadas contra sedentários: a nova luta de classes.

O tópico em causa, desenvolvido de diferentes perspetivas, como a histórica, a política a antropológica e a religiosa, surge a propósito da nova face das migrações, em particular, das dirigidas ao continente europeu e ao modo como este fenómeno tem contribuído para alterar o nosso paradigma perante o outro, o diferente, o estrangeiro.

Numa palavra, a luta já não é hoje entre o senhor e escravo, entre o trabalho e o capital mas entre os que tem um território, uma pátria, um espaço seu: os sedentários; e os que chegam, os que circulam, os que arriscam o caminho, desafiando esse mesmo território: os nómadas.

O tema, isto é, a relação entre sedentários e nómadas, entre cidadãos e bárbaros, a luta pelo território, é de sempre, não nasceu com esta nova vaga de migrações. A história do mundo, a história da humanidade é, aliás, uma história de invasões, migrações, sobreposição e aniquilamento. Todos começámos algum dia por ser nómadas, chegando mais tarde a sedentários, sendo posteriormente substituídos por novos nómadas.

O historiador israelita, Yuval Noah Harari, por exemplo, na sua obra Sapiens – De Animais a Deuses, conclui que a grande afirmação da humanidade assentou na sua capacidade de sedentarização. Ou podemos lembrar a Bíblia, no Velho Testamento, pois aí encontraremos a referência à sedentarização do Homem, através da narrativa sobre Caim, o primeiro sedentário, lavrador, ligado à terra e Abel, seu irmão, nómada, pastor e recolector (Caim matou Abel). Ou seja, já nas sagradas escrituras se descreve a luta entre os que marcam um espaço, um território como seu e os que desafiam este estado, essa pertença.

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Mas se sempre foi assim, o que há de novo? O que temos hoje é um novo desafio ao sedentarismo, aos que pensam que o mundo cristalizou, nomeadamente, a classe média europeia do pós-guerra. Daí a resistência face à mobilidade, perante a flexibilidade, no fundo, o receio do nomadismo, com a chegada do estrangeiro, seja ele emigrante, refugiado ou, nalguns casos, até o simples turista.

Não estamos perante um tema fácil e o mesmo tem muitas dimensões complexas cuja abordagem detalhada exigiria outras crónicas. Todavia não deixa de ser, ainda que em modo simplificado, um tema de forte e premente atualidade.

Ainda esta semana, Wolfgang Munchau, afirmava que a verdadeira ameaça para a Europa encontra-se no mar Egeu. E, infelizmente, apesar do tema parecer ter passado mediaticamente de moda, a verdade é que, também esta semana, morreram mais 1000 pessoas a tentar atravessar o mediterrâneo.

A humanidade volta a mexer-se, como as terras de lava. O vulcão demográfico, a vontade de viver e de poder, volta a fazer estremecer os alicerces do nosso quotidiano mais ou menos sedentário de europeus sentados na sua próspera estabilidade.

Como reagir, como lidar com este novo fenómeno? Que papel para a sociedade, para os partidos, para as velhas organizações de classe? Que papel para as comunidades, para as vilas, cidades e os seus poderes clássicos?

É certo, também que as anteriores clivagens não desapareceram, não deixaram de se fazer sentir. Na verdade, a clivagem entre ricos e pobres, entre operários e colarinhos brancos, entre gente do campo e da cidade, ainda marcam a sua presença. Contudo, hoje, deparamo-nos com esta nova clivagem, com esta nova dicotomia que expõe.

De um lado, temos os que vivem em permanente mobilidade, os trabalhadores da era da globalização, quer sejam ricos, como os financeiros, consultores, engenheiros das empresas internacionais, quer sejam pobres, como os que todos os dias fogem da miséria em busca de um mundo melhor, e, por outro, todos aqueles cujo trabalho está ligado umbilicalmente a um território, também mais ou menos servidos pela sorte do emprego, mas que sentem a ameaça da deslocalização da emigração em larga escala.

Desta nova clivagem até ao retorno do discurso inflamado entre o nós e o eles vai um caminho muito curto, como se assiste por toda a Europa. A pressão dos estabelecidos que perdem ou receiam perder o emprego, aqueles que receiam ter um vizinho com hábitos diferentes, os que temem pela suas tradições e cultura, começa a exigir ação por parte dos políticos. Estes, por seu turno, em lugar de tentarem incutir racionalidade, bom senso, começam também a cavalgar a onda do descontentamento (vejam-se os exemplos da Finlândia, do Reino Unido ou da França).

A linguagem volta a ser a do inimigo, do estrangeiro, da fronteira, do nosso território, da nossa pátria. Voltamos a olhar para a geopolítica e para a geoeconomia, o velho Estado volta a sonhar em reerguer-se através do seu povo, do seu poder político e do seu território. Voltamos ao discurso sobre a nossa língua, os nossos costumes: na Áustria, primeiro os austríacos. Esta mensagem política, aparentemente esquecida, voltou a fazer-se ouvir na última campanha eleitoral para as presidenciais austríacas. Sinal dos tempos? Moda passageira? Não creio.

Lembremo-nos que sociedades que não conseguiram adaptar-se aos desafios que enfrentaram acabaram por se desmoronar. O nosso planeta está polvilhado de monumentos a sistemas políticos que desapareceram, deixando-nos apenas com as suas relíquias. No final quem vencerá? Os que estão ou, mais tarde ou mais cedo, os que chegam, como aconteceu com a queda do velho império romano?

O aroma do tempo, para usar a bela metáfora do filósofo coreano-germânico, Byung-Chul Han, demorará a devolver-nos a resposta. Mas esta chegará, ou como tragédia ou, de modo menos grave, sob a forma de farsa. Espero, sobretudo, que não estejamos à beira de assistir à vingança de Abel.

Professor universitário