As Ordens profissionais são associações públicas nas quais o Estado delegou várias e importantes funções, tendo firmado ao longo da sua história, uma imagem de dignidade e credibilidade que as tornou credoras do respeito do povo português. Os bastonários, seus mais altos representantes, são a sua voz e face e têm a estrita obrigação de não só manter o prestígio adquirido como, pelo seu desempenho, acrescentá-lo ainda mais. O seu comportamento é sempre escrutinado pela comunicação social e pode, se errado, destruir num ápice o que levou décadas a construir pelos seus antecessores. E, pior do que isso, reflectir-se indelevelmente no prestígio de todas as outras Ordens sem excepção.

Vem isto a propósito da recusa dos enfermeiros especializados em cuidados materno-infantis, em actuarem enquanto tal e disso fazerem uma arma de arremesso num confronto que não respeita minimamente as regras que o mundo sindical de há muito impôs a si mesmo, e por isso não teve o apoio do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, o qual aliás já negociava com o Ministério da Saúde, de forma razoável, a diferenciação salarial dos enfermeiros especialistas, não exigindo porém os salários irreais que estiveram no cerne do conflito.

Confronto esse que não respeita a lei, sendo por isso mesmo considerado ilegal pela Procuradoria-Geral da República e, bem mais grave, não respeita as regras éticas e deontológicas da própria Ordem dos Enfermeiros. Basta recordar o Art.º 100, que é neste aspecto muito claro, pois entre os deveres deontológicos dos enfermeiros dispõe, na sua alínea c), que estes devem “proteger e defender a pessoa humana das práticas que contrariem a lei, a ética ou o bem comum, sobretudo quando carecidas de indispensável competência profissional”.

Por tudo isto, não percebo como pode a bastonária da Ordem dos Enfermeiros apoiar um movimento que recorre a processos anti-deontológicos para reivindicar salários. As Ordens não têm nem devem ter funções sindicais e muito menos devem dar suporte a actos que conflituam com a deontologia e a ética profissionais. Tal como não podem aceitar irregularidades como a suspensão do título de especialista sem suspensão simultânea da inscrição na Ordem desses profissionais. Quando o fazem desprestigiam-se, e diminuem drasticamente a sua capacidade de intervenção na sociedade, arrastando nesse desprestígio todos os profissionais que representam.

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Daí estar completamente de acordo com a posição tomada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, quando garantiu estarem os médicos “disponíveis para assegurar todos os cuidados que forem necessários às grávidas”, relembrando que “os médicos têm de facto essas competências e das quais não irão abdicar”, concluindo por fim que os clínicos têm o dever de auxílio em situações de urgência e que irão “assegurar os cuidados de que as mulheres grávidas necessitem”, posição essa que foi reforçada por declaração semelhante do Presidente do Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos.

É, pois, tempo de o bom senso e a deontologia imperarem e de as partes chegarem a uma solução justa para todos sem que a grávida e o nascituro paguem por isso.

Germano de Sousa é ex-bastonário da Ordem dos Médicos