Na semana passada, o observatório astronómico europeu VLT juntou os seus quatro telescópios para inaugurar um instrumento astronómico de precisão até hoje inalcançada: o ESPRESSO. A notícia passou meio despercebida, mas trata-se de um dos avanços instrumentais mais importantes dos últimos tempos.

Quando em 1609 Galileu Galilei construiu uma luneta capaz de aumentar 20 vezes os objetos distantes e teve a ideia de apontar esse instrumento para os céus, não sabia o que iria encontrar. Mas o facto é que esse instrumento permitiu uma série de descobertas que iniciaram uma revolução na astronomia. Primeiro, foram as montanhas da Lua, mostrando que os objetos celestes não eram menos materiais do que a nossa Terra – mais tarde foram as manchas solares, revelando que nem o Sol estava isento de mudança. Seguiram-se os satélites de Júpiter, anunciando que o cosmos não tinha um centro único, e as fases de Vénus, provando que esse planeta não rodava em torno da Terra. Em poucos anos, o novo instrumento revolucionou o nosso conhecimento sobre o universo.

O mesmo aconteceu com os grandes telescópios do século XX, que revelaram a expansão do universo, e com a radioastronomia, que revelou o ruído de fundo do universo e suportou a teoria do Big Bang.

Os telescópios VLT (Very Large Telescope)

Tudo leva a crer que o novo espectrógrafo europeu ESPRESSO, a que Portugal está associado desde os momentos iniciais, irá também possibilitar novos desenvolvimentos na astronomia. O aparelho é, em primeiro lugar, um instrumento de medida da velocidade das estrelas e, através dessa medida, um instrumento de descoberta e de estudo de sistemas planetários. Dada a sua extrema precisão, estará também dedicado ao estudo da possível variação de constantes fundamentais de física através da observação de quasar distantes.

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O novo instrumento é do tamanho de um pequeno autocarro, mas tem uma estrutura tentacular de túneis com mais de 70 metros de comprimentos que o ligam (através de lentes, prismas e espelhos) ao sistema telescópico mais gigantesco até hoje construído: o VLT, Very Large Telescope, que tem quatro telescópios de 8,2 metros cada, e que está situado no Cerro Paranal, sobre o deserto de Atacama, no Chile.

Esquema do ESPRESSO

Não é fácil chegar a esse lugar privilegiado para a observação astronómica. Está situado no meio do deserto mais seco do planeta, a 2635 metros de altitude. À medida que se avança, a vegetação rareia, e quando se sobe na montanha, as ervas rasteiras começam a desaparecer. Já perto do Observatório, existe uma base de observação, com algumas dezenas de quartos, duas cantinas, escritórios e salas de reunião. No centro está uma piscina e um pequeno jardim artificial sob uma gigantesca claraboia. Tudo, mesmo tudo, é transportado de longe para o local: gasolina, água, geradores elétricos, alimentos, equipamentos. De noite, a claraboia fecha-se e tudo é coberto, de forma a não emitir luz que possa perturbar as observações.

À roda, não se vêm nem ervas nem insetos, nem pequenos animais. O silêncio é estranhamente absoluto. Frequentemente, nem uma brisa se sente. De tal forma que há pequenos rádios nos quartos para se poder dormir. O silêncio extremo pode perturbar o sono.

Umas centenas de metros acima, está o observatório propriamente dito. Aí se situam os quatro telescópios gigantes e dois menores. Ao pôr-do-sol, os aparelhos abrem as suas portas e começam a ser ventilados, para que a sua temperatura se nivele com a da atmosfera e se reduza a turbulência que perturba as observações. É um mundo singular e maravilhoso, que os astrónomos quase veneram.

É nesse mundo admirável que foi montado o espectrógrafo ESPRESSO. Na semana passada, o instrumento recebeu pela primeira vez a luz combinada desses quatro telescópios, o que significa que começou a poder analisar com uma precisão inaudita a luz proveniente de objetos distantes.

Esquema da coleta de luz pelos quatro telescópios até ao ESPRESSO

É também a primeira vez que os telescópios juntam totalmente a luz dos quatro telescópios, realizando cabalmente a sua função. Na realidade, já conseguiam anteriormente juntá-la, mas na chamada forma “coerente”, o que implicava percas significativas. O ESPRESSO coleta luz de forma “incoerente”, o que significa que junta praticamente toda a luz recebida nos telescópios.

Com a potência combinada do sistema VLT, os astrónomos esperam estudar sistemas planetários extrassolares com planetas mais pequenos, semelhantes à Terra e ainda menores, para melhor perceber a formação do nosso próprio sistema planetário e, possivelmente, detetar planetas capazes de albergar vida.

Para nós, é extremamente interessante saber que os astrónomos portugueses, liderados por cientistas do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (Universidades do Porto e de Lisboa), fizeram parte deste empreendimento desde o seu início, em 2006. O envolvimento da equipa nacional permitiu planear o instrumento e centrá-lo nos objetivos científicos. Desta forma, a equipa assegurou um papel de liderança em todo o processo, tanto científica como tecnológica. Os astrónomos portugueses terão agora a possibilidade de utilizar o ESPRESSO em mais de 270 noites com o VLT, o que é um retorno científico extraordinário, só possível graças ao investimento realizado e à capacidade da equipa nacional. O investimento humano e material neste projeto é um orgulho para todos os que no nosso país se empenham no desenvolvimento da ciência.

Como se descobrem planetas?

O primeiro planeta extrassolar orbitando uma estrela semelhante à nossa foi descoberto em 1995 depois de uma busca de séculos para encontrar planetas em torno de outras estrelas que não o Sol. O método que finalmente conseguiu esta descoberta é essencialmente o mesmo que o ESPRESSO utiliza: detetando pequenas variações periódicas na frequência de luz emitida pela estrela deduz-se que esta se move aproximando-se e afastando-se ligeiramente de nós (efeito Doppler). Esse movimento pode indicar a presença de um planeta em sua órbita.

O ESPRESSO é o espetrógrafo mais sensível até hoje construído. Consegue uma estabilidade de temperatura e pressão muito superior às dos instrumentos anteriores e atinge maior precisão na separação de frequências. Assim, conseguirá detetar movimentos (radiais) das estrelas a uma velocidade que em astronomia é extremamente baixa: 0,35km/h – ou seja, o equivalente à de um bebé que gatinhe a seis metros por minuto. Aliando a essa precisão uma capacidade extraordinária de captação de luz, o ESPRESSO trará certamente muitas novidades ao nosso conhecimento do cosmos.