“Declaro que li e aceitei os termos de utilização” será, porventura, a demonstração cabal de que uma mentira repetida muitas vezes não se torna verdade. Esta, contudo, é-nos já automática: antes de criarmos uma conta ou subscrevermos qualquer serviço online, lá declaramos, novamente, que lemos e aceitámos os termos de utilização. E quantos de nós o fizeram mesmo? Quase nenhum?

E que utilização estamos a autorizar, quando o fazemos? Na verdade, depende: umas vezes apenas a do nome e do e-mail, noutras do nosso histórico de pesquisa online, da nossa localização geográfica, dos nossos hábitos de compras, dos comandos de voz que damos aos smartphones… ou até daquilo que dizemos antes ou depois desses comandos de voz e que nem sonhávamos que estava a ser gravado.

E, como não nos sentimos confrontados com essa troca – a dos dados pessoais que temos de sacrificar pelo serviço a que queremos aceder – nunca percebemos que, a cada subscrição, estamos um bocadinho mais expostos, um bocadinho mais públicos, um bocadinho mais vigiados.

Este sacrifício de privacidade é, em muitos casos, quase inconsciente. Todos sabemos que perdemos “alguma” privacidade a cada subscrição, mas não sabemos efetivamente quanta perdemos, nem quanta nos resta. E, às tantas, deixamos até de nos preocupar com isso.

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Nesta senda, têm sido muitos os que afirmam que a privacidade morreu: ou porque já não somos capazes de viver sem esses serviços que requerem informações pessoais sobre nós, ou porque mesmo que quiséssemos, já tudo à nossa volta é smart e faz essa recolha automaticamente: relógios, camas, frigoríficos, televisões. Para além disto, esquemas de vigilância em massa, como os revelados por Edward Snowden, deixam-nos pelo menos na dúvida sobre quem tem, ou poderá ter, acesso ao que fazemos.

Ora, se morreu a privacidade, pergunta-se ainda: importamo-nos com isso? Você, por exemplo, que lê este artigo. Se lhe perguntar “quer ter privacidade?”, o que me responde? Se estiver com a esmagadora maioria, de acordo com os muitos estudos publicados sobre o assunto, então a sua resposta será “sim, claro!”. E se lhe perguntar se já aceitou os termos de utilização de um serviço sem os ler ou sem os compreender? Novamente, a esmagadora maioria dirá que sim, que já o fez e continuará a fazer, pois é a única maneira de ter acesso aos serviços que deseja.

É este o chamado paradoxo da privacidade: damos muito importância à privacidade mas agimos como se lhe não déssemos importância nenhuma. Daí os gritos de alguns apressados: a privacidade morreu!

São gritos prematuros, pois é inconcebível que se diga morta uma coisa que é essencial às pessoas. Temos, contudo, de encontrar uma forma de conciliar o nosso desejo – e por vezes necessidade – de aceder a determinados serviços, com a necessidade – e muitas vezes desejo – das empresas acederem aos nossos dados para nos prestar esse serviço.

Precisamos de saber, com certeza, o que estamos a autorizar e em que termos. Esse esforço informativo deve ser feito em conjunto por quem pede os dados e por quem os dá, porque implica um contrato de confiança entre as duas partes: a empresa ganha segurança no consentimento do sujeito e o sujeito autoriza conscientemente a utilização dos seus dados para os fins acordados. Mas será que os atuais termos e condições longos, cheios de linguagem jurídica, alguma vez atingirão esse objetivo? Ou precisamos de arranjar um outro modelo, mais flexível, mais simples, que informe efetivamente?

A privacidade ainda não morreu, porque continua a ser uma parte essencial nas nossas vidas. Há coisas que só fazemos quando acreditamos que ninguém nos está a ver, seja cantar em voz alta, falar com a televisão ou andar nus pela casa. Os momentos em que acreditamos não estar sujeitos a olhares de terceiros são essenciais para nos expressarmos verdadeiramente, livremente.

Nós somos, em grande medida, aquilo que fazemos quando achamos que ninguém está a ver. Que pessoas nos tornaremos se sentirmos que nunca estamos realmente fora do alcance dos outros?

O direito à intimidade da vida privada é fundamental, em todos os sentidos da palavra. Ou o defendemos ativa e atentamente, ou vamos mesmo acabar por deixá-lo morrer. Como vai ser?

P.S.: Aconselho, a este propósito, a TED Talk, de Glenn Greenwald.

João Marecos tem 25 anos e é advogado no escritório de Lisboa da sociedade de advogados britânica Linklaters LLP. Licenciou-se em 2013 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde fez uma pós-graduação em Direito Intelectual. Tem-se dedicado ao estudo do direito à privacidade e à proteção de dados pessoais, bem como ao impacto da tecnologia no Direito.

Nota ‘Shapers’: os Global Shapers de Lisboa irão, ao longo dos próximos meses, no Observador, discutir alguns dos grandes temas do presente e do futuro, como este da “Privacidade na era digital”. Na próxima semana, o Global Shaper Rui Maria Pêgo vai falar-vos de redes sociais. Deixamos a pergunta: quando nos juntamos a uma rede social, abdicamos da nossa pretensão à privacidade?