Muitas vezes, não notamos as mudanças quando elas acontecem. Falta-nos a distância suficiente. O Verão de 2017 trouxe uma alteração significativa à política portuguesa. Acabou o estado de graça do governo e do PM António Costa. Em política, quando se perde a graça, ou a fortuna, é muito difícil recuperá-la. Tudo parecia correr bem até Junho. A propaganda apresentava-nos um país de novo próspero, um povo feliz e contente e um PM a transbordar talento político. A um governo que tratara mal os portugueses, seguiu-se um governo cuja vocação seria tratar muito bem os mesmos portugueses. O que o velho tinha tirado, o novo iria restituir. Nem todos acreditam na propaganda oficial, e sublinham as contradições, os equívocos e as fragilidades da geringonça.

A semana que passou mostrou de um modo nítido as contradições da aliança das esquerdas, curiosamente quando passaram dois anos sobre a sua formação. Começemos pela feira de vaidades e pela exibição de saloice, também conhecida por Web Summit. O mundo das apps, das start ups e do empreendorismo é o oposto da visão que a geringonça tem para a sociedade portuguesa. O primeiro valoriza a iniciativa privada, o investimento capitalista e conhece o sucesso nos mercados. A segunda limita e controla a iniciativa privada, privilegia os investimentos públicos e prefere o Estado aos mercados. Não foi o investimento público nem o Estado que fizeram a Apple, a Google, o Facebook, a Amazon ou a Uber. Foram a iniciativa e o investimento privados e o mercado. Não é por acaso que todas elas são norte americanas. Na mesma semana em que o governo negociou um orçamento que aumenta o peso do Estado, a despesa pública e recusa medidas fiscais para promover o investimento privado, o PM foi à Web Summit defender a iniciativa privada e os novos empreendedores. Muitos políticos hoje em dia acham que é uma habilidade ser capaz de dizer tudo e o seu contrário, dependendo das audiências e dos interesses de momento – e Costa é o paradigma desses políticos – mas há limites para a habilidade política e o PM já os atingiu. Não há propaganda que faça Sillicon Valley e geringonça rimarem.

A semana que passou mostrou mais uma vez as tensões sobre a Europa que dividem o governo dos seus camaradas. Voltou a falar-se da possibilidade do ministro das Finanças, Mário Centeno, ser escolhido para presidente do Eurogrupo. Se for escolhido, uma das suas principais funções será dar voz à ortodoxia monetária da zona Euro. Julgo que ninguém acreditará que uma eventual escolha de Centeno significasse uma alteração doutrinal nas políticas do Euro. Pelo contrário, Centeno será o eleito se os países do Euro decidirem que um socialista de um país do Sul será o rosto ideal para defender as políticas do Euro. Na mesma semana, o líder do PCP defendeu, com o fervor ideológico próprio dos que olham para a política como uma religião secular, a Revolução Bolchevique e a herança do comunismo soviético. Ora, mais uma vez, o ministro que quer liderar o Euro, vai ter o voto dos comunistas para o seu orçamento. O mundo da União Soviética e o mundo do Euro constituem dois planetas diferentes. São incompatíveis. A tentativa de os reconciliar terá custos para a economia portuguesa.

Além dos custos, não é fácil reconciliá-los, como também se viu esta semana. A paz social, tão benéfica para este governo, está cada vez mais frágil. Os sindicatos agitam-se, até o líder da UGT foi duro com o governo, e as greves multiplicam-se. Mais uma vez, notam-se as contradições da geringonça. As coligações das esquerdas fazem demasiadas promessas para os recursos a que têm acesso. Quem governa para agradar às corporações e simultaneamente tem que respeitar os compromissos do Euro, não tem dinheiro suficiente para distribuir. É por isso que há greves e protestos. Chegámos ao momento em que a paz social exige o incumprimento das regras europeias do défice público, como dizem o PCP e o BE. O governo, obviamente, não vai violar as regras do Euro. E mesmo que fosse tentado, o Presidente da República não o permitiria.

A impossibilidade de reconciliar as promessas às corporações com as regras orçamentais do Euro causou um segundo problema. Os recursos financeiros são usados para contratar e aumentar ordenados, mas não chegam para o investimento necessário ao bom funcionamento das escolas e dos hospitais. O Estado clientelar está a enfraquecer o Estado social. De repente, o país onde tudo corria bem tornou-se “um país pobre, de gente velha e doente, entregue a si próprio e abandonado”. Não foi um perigoso neoliberal que o disse. Foi um ministro. Ele saberá porque acha que o país está “abandonado”. Os próximos dois anos da geringonça não serão tão felizes como os primeiros. E, como mostrou o Verão de 2017, a política muda de um modo mais rápido e inesperado do que muitos julgam.

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