Foi recentemente anunciado o próximo início de um Programa Nacional de Fogo Controlado para o qual, neste começo de ano, se tem que desejar o tão indispensável como necessário êxito. O seu anúncio suscitou-me algumas reflexões que a seguir sintetizo.

1. No início, isto é, a curto prazo, dada a urgência e o pouco tempo até ao próximo mês de Maio, será natural que o programa se vá aplicar onde for possível, nos pontos mais críticos, com os meios disponíveis, tendo como objectivo quase exclusivo, reduzir o risco de incêndio nas áreas mais ameaçadas que são conhecidas.

2. Porém, em minha opinião, dever-se-á ter em conta na sequência do processo, a médio e longo prazo, um conjunto complexo de outros factores que obrigarão, a profundo estudo e reflexão e à avaliação rigorosa das respectivas consequências, numa óptica de ecologia do fogo. Por exemplo, as combinações do tipo de combustível (urzais, giestais, rosmaninhais, carquejais, tojais, sargaçais, estevais – por ordem aproximada da dificuldade de os queimar), da respectiva composição e estrutura (estreme, com pinhal bravo em bastio, fustadio ou alto-fuste, com pinhal manso, com sobreiral ou com carvalhal); e da estação do ano em que se faça a queima (de Primavera ou de Outono/Inverno), apontam já aqui para mais de quarenta cenários diferentes. Estes podem imaginar-se multiplicados, conforme o tipo de vegetação herbácea, a existência de caruma, folhado ou material lenhoso, as diversas combinações possíveis. Como seguramente sabem aqueles que em Portugal têm mais prática de fogos controlados, a dificuldade da sua execução é diferente para cada um destes cenários e tipos de matagal ou mata. Cada caso é um caso.

3. Mas para lá da específica execução do fogo controlado, é necessário estudar na sequência das queimadas, quais os seus reflexos, os quais variarão muito, de acordo com as condições no momento da queima, consoante a biomassa presente, a temperatura, a humidade ambiente, a velocidade do vento ou o declive. Estes factores, bem como o facto de o fogo ser feito a favor ou contra o vento, alteram a temperatura desenvolvida e esta altera significativamente as respostas das diversas plantas no que diz respeito à produção de sementes, de novos rebentos e folhas ou ao seu futuro crescimento. Consequentemente, fazem variar os seus efeitos sobre todo o ecossistema. Uma vez conseguida a redução temporária do risco de incêndio, um primeiro passo será antever e planear o possível restauro florestal e usos racionais do espaço.

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Mas muito para além disso, será indispensável avaliar os reflexos para a pastorícia (se dominantemente de ovinos, caprinos ou bovinos), para a apicultura, para a caça (maior ou menor), para a fauna entomológica e ornitológica, para a biodiversidade, para a conservação da natureza e para a paisagem, determinantes de diferentes efeitos nos desígnios das pessoas envolvidas, das empresas, das autarquias e dos objectivos sociais, culturais e económicos.

4. Estas matérias são de um interesse transcendente e exigirão estudo intenso e continuado que deverão envolver Universidades e instituições de investigação. Tendo origem inicialmente na competência de botânicos, agrónomos e silvicultores, alargar-se-ão rapidamente a uma multiplicidade de profissões que vai dos arquitectos, dos paisagistas, dos engenheiros aos economistas, aos sociólogos, aos planeadores do território ou aos políticos.

É um desafio estimulante que, embora urgente, exige muita investigação, conhecimento, reflexão e bom senso, implicando trabalhos de equipa e os necessários meios materiais e humanos.

5. Não é tarefa fácil inculcar na generalidade da opinião pública, até mesmo dos mais opinantes, dos governantes, dos deputados e restantes políticos, a importância da ecologia do fogo. O mundo urbano apenas vê o fogo como o inimigo, o causador dos incêndios, não entendendo que só o tornando aliado se poderão reduzir os incêndios. Muitas das gerações anteriores sabiam-no, bem melhor do que nós.

Até mesmo alguns dos que falam sobre o fogo com algum conhecimento, muitas vezes não vêem para além da prevenção e do combate, isto é, não vêem para além do apagar, mesmo quando defendem o apagar de forma correcta. Paradoxalmente, apagar em excesso ou eliminar o fogo, leva a maiores incêndios no futuro.

Encarado o fogo numa perspectiva ecológica, torna-se num tema amplo e digno de uma visão holística.

É essencial e indispensável explicar a populações cada vez mais urbanas que o fogo é um elemento do ecossistema idêntico ao solo ou à água, só que estes podem impelir consequências desastrosas só por si (cheias, inundações, derrocadas, avalanches) mas o fogo interage com os combustíveis e é moldado por eles. Temos que aprender a torná-lo num aliado, aproveitando a sua capacidade para reduzir, até mesmo combater os incêndios, lidando com ele com saber adquirido através do estudo e da experiência, com desembaraço, coragem, determinação e capacidade de decisão.

6. Fácil é dizer nas televisões e nos jornais que se contratam centenas de novos sapadores. É até persuasivo mostrá-los com fardas “novinhas em folha”, equipamentos reluzentes, ao lado de belos jeeps amarelos. Mas quanto tempo leva a preparar convenientemente um sapador? Quando estarão estes homens aptos a actuar com competência e eficácia? Quanto tempo é necessário para preparar quem os possa eficientemente comandar?

Tardou…

Agora é urgente prepará-los rapidamente tendo em conta que, entretanto, o clima aquece e os matos não param de crescer…

(Rápido, mas lamentável, foi terem sido extintos os GAUF.)

Depois da intensidade inusitada dos incêndios deste ano, a apreensão tem de ser forçosamente maior, logo terão de ser melhor preparadas as estruturas, a organização, os equipamentos, as acções e as medidas preventivas.

7. E depois das cinzas? Como fazer para que mais de dois terços do território, sem os quais o país não é país, invertam o processo de empobrecimento e degradação?

A resolução do problema é tão difícil que devia envolver-nos a todos, individual e colectivamente, das escolas às empresas, das diversas instituições aos partidos. Sem mentiras, sem demagogia, sem falsas promessas, com muito empenho, humildade, vontade de aprender, conhecimento, disciplina, querer, continuidade e persistência a longo prazo. Em articulação integrada e permanente com as políticas nacionais e europeias.

Temos que proporcionar melhor futuro para as pessoas, mesmo que poucas e cada vez menos, de enorme parte deste nosso território à beira-mar plantado. É compulsivo que a estreita tira dos êxitos económicos, das “web-summit”, do regozijo e dos festejos, das manifestações, da prosperidade de conhecimento e meios, use a capacidade das novas tecnologias e o saber criar riqueza (inclusive do potencial inexplorado do mar) em favor das populações do interior e do desenvolvimento desse agora pobre território que terá de se tornar viável, aprazível e suporte de dignas condições de vida.

Só quando o mundo urbano for levado a compreender como está estreitamente dependente do todo, o qual amputado de qualquer uma das partes deixa de ser um país digno do espaço europeu, bem como a sentir a responsabilidade material e ética de contribuir para o restauro e viabilização sustentada das regiões mais deprimidas ou do interior, é que Portugal alcançará de novo e plenamente a sua identidade territorial como Nação.

Engenheiro silvicultor, antigo quadro dirigente da Direcção-Geral de Florestas