Choque de civilizações. Esquerda contra direita. Ricos contra pobres. Norte contra Sul (não é bem o mesmo). Moderados contra radicais. Civilização contra barbárie (não é bem o mesmo, mas quase). Europa contra a globalização. Civilização ocidental contra si mesma.

De todas as oposições maniqueístas imagináveis, o mundo ocidental enfrenta, por estes dias – meses e anos -, um choque entre concepções de vida que é, a um tempo, uma ameaça real e um aviso sério: regressar ao passado é possível. De um lado, uma Europa livre e inclusiva, baseada na partilha de soberania e não na perda de soberania nacional (como dizem tantos, gritando ao diabo escondido na construção europeia e esquecidos do diabo no passado, esse bem visível e assustador), pois o que se partilha são os meios de recuperar influência, e – sim – poder, num Mundo em que o continente deixou de ser o centro do Mundo.

A Europa, no seu projecto de integração aduaneira, comercial, económica, financeira, social e até política, encara uma espécie de Dias do Fim, de que o referendo britânico pode ser (ou vir a ser) uma mera alvorada. Sejamos francos, sejamos práticos, sejamos crus: o “brexit” pode desencadear, num prazo mais ou menos curto, outros “exits” – um “frexit”, conduzido por Marine, um “austrexit”, liderado pelo FPO que já foi de Haider, um “suexit”, quiçá um “portexit”. Sim, Portugal pode sair da União Europeia (UE). É aliás o que defende cada vez mais gente, ainda que sob formas aparentemente benignas como a saída do euro, o repensar da integração europeia, a resistência a Bruxelas, a recuperação da autonomia(?).

Permitam-me que me concentre neste ponto, aparentemente simples mas decisivo: a ideia de que a integração dos povos da Europa limita a soberania dos Estados, e lhes retira liberdade e margem de manobra. A UE, chega a afirmar-se, é (pode vir a ser) “uma espécie de império europeu em Bruxelas, guiado pela Alemanha(Ferreira do Amaral, 2016).

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Ninguém de boa fé nega que algo vai mal no reino de Bruxelas. A Comissão Europeia, face à maré da crise e às consequências desastradas e imprevistas do Tratado de Lisboa, viu-se apoucada nos seus poderes, descredibilizada na capacidade de intervenção supranacional, fragilizada perante os governos nacionais, quer nas respectivas capitais quer no próprio Conselho Europeu. E não soube encontrar um rumo estável e seguro. A forma errática como tem gerido as diferentes fases da crise – e a situação, por vezes dramática, dos países mais frágeis -, ilustra bem a perda de influência daquela que foi, durante décadas, a principal instituição europeia.

E é essa a principal crítica feita à União: incapacidade de dar resposta à crise económica e financeira; à crise dos refugiados; à crise identitária; à crise na Ucrânia. Porque, caros leitores, meus amigos, se a Comissão, principal instituição europeia – e o seu executivo – tivesse sido capaz de impedir ou minorar os efeitos de todas essas crises, não assistiríamos agora ao triste espectáculo europeu.

Mas se a Comissão não foi capaz, quem tomou o seu lugar? A resposta é simples: os Estados, em encontros restritos e discretos em certas capitais europeias ou reunidos no Conselho Europeu. A votar por unanimidade, como sucede em qualquer instituição internacional (intergovernamental, se me permitem o palavrão). Isto é, os críticos da integração europeia não estão certamente a opor-se ao poder supranacional de uma Comissão descredibilizada e (quase) impotente, mas às decisões tomadas pelos Estados nacionais. Por unanimidade. Num fórum intergovernamental. Onde em teoria todos são iguais.

E a quem exigem então os críticos que seja devolvido o poder de decidir? Aos Estados…

Podem os leitores considerar o raciocínio intelectualmente menor ou desleal. Porque, dirão, é aos Estados – e não a uma instituição internacional, por intergovernamental que seja -, que pretendem que os poderes sejam devolvidos. Aos Estados, donos do seu destino, mestres do seu caminho, livres das teias de Bruxelas (ainda que enfraquecidas e gastas). Mas esses poderes, que dizem dever ser reassumidos pelos Estados, há muito que não são seus para usar. Há muito tempo que nenhum país decide sozinho com quem negoceia e em que termos (como se o Reino Unido, se “brexitar”, não tiver de renegociar com os seus ex-parceiros europeus as condições em que pode exportar os seus produtos, mesmo os financeiros); e que valor tem a moeda própria, em particular a dos países de economias mais frágeis (como se Portugal, quando tinha moeda própria, não recorresse à ajuda externa – não é FMI?); e já agora que valor tem a moeda própria, em particular a dos países mais fortes (que valor atingirá um renascido marco?… e com que consequências para as exportações germânicas)?

Não vivemos sozinhos. O erro dos que repetidamente apelam a um regresso ao passado, de um continente de Estados-nação totalmente soberanos, não é um erro. São cinco:

  • A UE existe porque é necessária, e não por capricho dos homens ou um acaso da História; a UE existe porque a Europa viveu anos de mais – literalmente desde sempre – em permanente guerra civil, recorrente, cíclica, brutal. A União fez-se para acabar com ela. E ela acabou.
  • Pensar que é possível voltar só um bocadinho atrás – ao tempo do mercado comum sem mercado interno (não é a mesma coisa!) nem euro -, é confundir a UE, mesmo a do mercado comum, com uma zona de livre troca, uma EFTA magnificada. Porque a total liberdade dos factores requer partilha de soberania. Sem ela, o proteccionismo regressará a toda a força.
  • O problema não é a UE. O problema é a globalização. Este continente, a Europa, dominou o Mundo durante perto de 500 anos. Impôs a sua cultura, mitos e heróis, a sua civilização, os termos de troca que lhe eram favoráveis. Usou para isso um avanço tecnológico significativo. As coisas começaram a mudar quando os EUA assumiram a liderança, económica como de “hardpower”; mas os EUA são o filho que se emancipa, e a relação com os pais, ainda que por vezes difícil, foi quase sempre de afecto e colaboração. As coisas mudaram mesmo quando um novo avanço tecnológico e a emancipação dos povos trouxe, de golpe, novos actores para a cena principal do teatro global: asiáticos, africanos, árabes, sul-americanos.
  • Em acelerada perda demográfica, a Europa dos Estados será presa fácil dos futuros tubarões da globalização. Todas as projecções o indicam.
  • E finalmente, a questão liminar e crucial da relação entre os países pequenos e grandes da União, os ricos e os pobres, os do Norte e os do Sul. Há um verdadeiro desequilíbrio, com os excedentes de uns a engordarem à custa dos défices dos outros. É indispensável que nos convençamos da importância de uma solidariedade real, não por bondade de coração mas por necessidade de sobrevivência colectiva. É errado pensar que as coisas seriam de alguma forma melhores com os países mais pobres entregues a si próprios; em que passado mirífico, para lá das teorias, assenta essa ideia? Num continente em perda de competitividade e em risco de ser derrotado na batalha da globalização, o regresso ao paradigma clássico do Estado soberano – em si mesmo um anacronismo – é uma ideia simpática mas inexequível.

Há muita coisa errada na actual integração europeia. Boa parte do que está errado, talvez a maioria, decorre dos egoísmos nacionais, que impõem visões de curto prazo, miopias nacionalistas (não confundir com patrióticas), cujo prazo de validade caducou há muito.

No século XXI não é boa ideia tentar regressar aos paradigmas do século XIX. A integração europeia ainda é, esperemos que possa continuar a sê-lo, um dos mais generosos e promissores projectos económicos e políticos do nosso tempo. De todos os tempos.