Numa altura em que está na ordem do dia a questão da continuidade, ou não, do Reino Unido na União Europeia, vale a pena reflectir um pouco sobre algumas das mais salientes peculiaridades britânicas, em especial no que diz respeito à sua cultura e tradição políticas. A reflexão ganha ainda mais razão de ser por se ter assinalado por estes dias o nonagésimo aniversário da Rainha Isabel II, inequivocamente a mais marcante monarca dos últimos cem anos.

Para os observadores menos atentos, muitas dessas peculiaridades poderão parecer meras bizarrias mais ou menos anacrónicas. Vestígios formais e cénicos de um passado distante com pouca relevância para o presente. No entanto, uma análise mais atenta permite compreender que é bastante mais que isso que está em causa. Para tentar perceber isso mesmo vale a pena começar por recordar a excelente síntese feita pela Embaixadora Kirsty Hayes em artigo recente no Diário Económico:

“O que eventualmente não saberão é que por trás de toda a pompa e circunstância, existem alguns elementos da nossa tradição parlamentar tipicamente britânica que se desenrolam fora da vista do público. Por exemplo, quando os guarda-costas da Família Real revistam cerimoniosamente as caves do Palácio de Westminster (o Parlamento) à procura de explosivos – numa alusão à conspiração de Guy Fawkes de 1605; quando um dos deputados da Câmara dos Comuns é mantido refém no Palácio de Buckingham enquanto a Rainha está no Parlamento, como forma de garantir o seu regresso em segurança – remontando ao tempo da Guerra Civil entre a Monarquia e o Parlamento no século XVII; ou quando as portas da Câmara dos Comuns são fechadas na cara do representante da Monarca – ritual que remete para a mesma época, simbolizando a independência desta Câmara perante a Monarquia.”

O que há de comum em todos estes elementos? A ideia de checks and balances, de que todos os poderes precisam de ser limitados e de que numa sociedade livre ninguém – nem políticos democraticamente eleitos, nem mesmo uma Rainha sábia, ponderada, corajosa e prudente – pode estar acima da Lei. A preeminência da noção do rule of law na tradição política britânica remonta, como é sabido, à Magna Carta. Sendo certo que documentos similares existiram noutros países, o facto de ter sido no Reino Unido que um documento como a Magna Carta adquiriu uma carga simbólica e uma influência tão notórias não deixa de ser significativo – e distintivo – relativamente a outras realidades e culturas políticas, dentro e fora da Europa.

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O percurso associado à aplicação dos princípios consagrados na Magna Carta foi frequentemente sinuoso e ocasionalmente sangrento mas, pelo menos desde a Glorious Revolution de 1688, a diferença britânica tem sido clara. À semelhança do que acontece noutros países, o Reino Unido sofre também com a acção de extremistas e loucos — como o horrendo assassinato da deputada trabalhista Jo Cox nos veio tragicamente recordar. Mas, ao contrário do que acontece em muitos outros países, ao longo dos últimos séculos o sistema político britânico conseguiu evoluir gradualmente, num processo de sucessivos ajustamentos adaptativos por tentativa e erro, sem nunca ficar refém desses extremistas e loucos.

O que importa tudo isto para a questão do Brexit? Não sei quantificar de forma exacta, mas suspeito que importará bem mais do que os numerosos estudos conjunturais e prospectivos que têm sido divulgados sobre o assunto nos últimos tempos. Creio aliás que, como até certo ponto é expectável num processo desta natureza, de ambos os lados se têm exagerado as consequências (positivas ou negativas) para o Reino Unido do resultado do referendo. O que pode ser dado por adquirido é que, fora ou dentro da UE – e certamente muito para além da UE — o Reino Unido continuará a ser diferente.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, membro do Benedict XVI Centre for Religion and Society e Visiting Senior Fellow da St. Mary’s University.