A esquerda unida quer “salvar” o SNS. António Arnaut, o pai fundador, acolitado por João Semedo, do BE, apresentou um livrinho que se propõe ressuscitar um SNS “integralmente” público. Meia centena de “personalidades” de esquerda vieram pedir o fim das taxas moderadoras e mais dinheiro público para o SNS. E a inefável Catarina Martins, que adora falar antes de toda a gente, veio logo dizer que é preciso acabar com os “privados”, essa nefanda gente para quem “a nossa saúde é um negócio comparável com a venda de armas”. Esta tomada de posição pública, que não espanta, à luz da nova dinâmica frentista que a geringonça inaugurou, é uma óptima oportunidade para acabar com os falsos consensos na saúde. É preciso que a direita vá a jogo e formule propostas alternativas, que sejam mais do que argumentar que é mais poupadinha.

Há pontos sobre os quais não vale a pena elaborar: que os profissionais devem ser mais bem pagos ou que é urgente controlar o crescimento exponencial da despesa são evidências com que todos concordam. São problemas de gestão. O que importa é a política. A esquerda tem linhas definidoras: cobertura total pela estrutura pública; gratuitidade; envolvimento da pessoa numa rede feita de estruturas de saúde, escola e segurança social que a acompanha e condiciona do berço até à cova; políticas de saúde pública cada vez mais obrigatórias e intrusivas. Além disso, a esquerda tem, na gestão do SNS, um padrão de não pagamento a fornecedores que é, em si, um desprezo bem ideológico por quem cria riqueza e emprego. É por aqui que a direita deve marcar a diferença. Há duas áreas em que essa diferença deve ser clara: a propriedade das estruturas e as liberdades.

Comecemos pelas liberdades. Uma política de saúde de direita deve assumir que não cabe ao Estado tutoriar os cidadãos. Não deve, por exemplo, proibir croquetes e bolos nos bares dos hospitais. Mas deve promover a informação e facilitar comportamentos seguros, de que são exemplos as campanhas para o uso do preservativo e de troca de seringas. E deve, sobretudo, assumir os custos sociais do exercício da liberdade individual de erro.

Sobre a propriedade, não posso concordar com a Helena Garrido quando diz que “temos de nos concentrar em melhorar os serviços em vez de nos perdermos no debate sobre se deve ser público ou privado”. Ninguém contesta hoje a ideia de um serviço nacional de saúde universal, que garanta a todos os cidadãos a assistência mínima vital. Mas pode e deve ser discutido que estruturas devem ser públicas e privadas, à luz da eficiência na alocação de recursos e da qualidade da assistência. Há áreas em que só o Estado tem condições para canalizar os recursos necessários e suportar os custos (literalmente sem retorno, porque os ganhos são aqui mediatos e socialmente difusos), como os tratamentos oncológicos. Mas há outras áreas, por exemplo ao nível dos cuidados primários, em que os privados conseguem ser mais flexíveis na gestão de recursos e na adequação às necessidades e expectativas das populações.

Sobretudo, a direita não pode continuar a aceitar a posição da esquerda, segundo a qual, para citar António Arnaut, os privados devem ser “postos na ordem” porque o seu lugar é “complementar”. Os privados da saúde são parceiros de pleno direito, que não podem ser tratados como parasitas a que o Estado faz o favor de deitar umas migalhas quando lhe dá jeito. O problema é o mesmo que atinge as escolas com contratos de associação e é um ponto em que a direita deve assumir claramente a diferença com a esquerda.

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