A semana passada, vimos o governo português levantar-se solenemente da sua cadeira, e, apoiado em 600 mil funcionários e numa despesa equivalente a 50 % do PIB, excomungar a empresa de telecomunicações empenhada na compra de uma das televisões generalistas. Começou assim a segunda guerra da TVI. Como a primeira guerra (em 2009), também envolve a PT. Só que esta PT já não é a de Ricardo Salgado, mas a da Altice, uma multinacional francesa. Daí o novo conflito.

Talvez valha a pena recordar a guerra de 2009.

É hoje claro, como já era na época para quem queria ver, que o grande projecto de José Sócrates, em aliança com Ricardo Salgado, era o controle governamental da banca, das grandes empresas e da comunicação social. Foi assim que os dois aliados defenderam a PT contra a proposta da Sonae em 2006 — para depois a fazerem desabar no Brasil, em negócios aparentemente arranjados com o então presidente Lula, entretanto condenado por corrupção. Em 2009, Sócrates terá tentado usar a PT para comprar a Media Capital e suprimir o incómodo dos telejornais da TVI. Ao procurador e ao juiz do caso Face Oculta, que ouviram as conversas, pareceu a trama de “um atentado contra o Estado de Direito”.

A bancarrota de 2011 destruiu o império que Sócrates e Salgado estavam a montar. Provocou a queda do primeiro-ministro, e em 2014, a do “banqueiro do regime”, que arrastou com ele a PT. Ao mesmo tempo, parece ter libertado a justiça para investigar as alegadas delinquências por detrás do socratismo. Em 2015, porém, os ministros e assessores de Sócrates voltaram ao governo, amparados pelo PCP e pelo BE. O que significa a sua ofensiva contra a PT-Altice por causa da TVI?

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Nunca um primeiro ministro em Portugal tinha declarado deste modo guerra a uma empresa privada. António Costa chegou ao ponto de admitir finalmente as falhas do SIRESP, só para poder culpar a PT. O Bloco de Esquerda, entretanto, fez o favor de inventar uma querela de empregos, a fim de dar dignidade de esquerda ao ataque. Mas será essa a verdadeira preocupação do governo?

Não sabemos ao certo quais as intenções da Altice. Mas temos todas as razões para desconfiar das do governo. Os precedentes da equipa governamental e os sinais que já deu justificam todas as suspeitas. É claro que a comunicação social continua a ser uma obsessão para os herdeiros do socratismo: basta pensar na célebre histeria com o correspondente do El Mundo. Terá ocorrido a alguém que a tragédia de Pedrógão Grande ou a humilhação de Tancos teriam sido politicamente ainda mais gravosas com alguma televisão mais desalinhada? Estarão os sucessores de Sócrates tentados a aproveitar o saneamento da banca e uma eventual rearrumação da comunicação social, para relançarem o projecto imperial do seu antigo chefe? Ou sentem que lhes convém, pelo menos, marcar os limites consentidos ao jornalismo e à opinião, confrontando a Altice com “obstáculos políticos à concretização do negócio”, para usar a expressão de um analista do mercado?

Em crise de receitas e de transição tecnológica, nunca a imprensa terá estado tão vulnerável à intimidação e ao controle. No entanto, uma comunicação social plural e independente do poder político é uma das condições fundamentais de uma democracia que não seja, como os défices orçamentais, só para Bruxelas ver. Em Junho de 2009, perante “dúvidas fortes” acerca das manobras à volta da TVI, Cavaco Silva exigiu “transparência”. Esperemos que oito anos depois, a república continue a ter um presidente preocupado com a transparência na comunicação social.