A mitologia grega legou-nos a figura de Penélope. Personagem do clássico grego de Homero, A Odisseia, Penélope passava o dia a fazer um sudário (mortalha) para Laertes, logo o destruindo durante a noite, e assim sucessivamente, enquanto aguardava pela chegada do seu amado Ulisses a Ítaca.

Ora, esta é a metáfora certa para explicar o nosso endémico frenesim legiferante, bem como a nossa propensão, bem napoleónica, de governar fazendo novas leis (recorde-se que Napoleão Bonaparte dizia que o seu grande contributo para a humanidade era o Code Civil de 1804).

Com efeito, gostamos de fazer e desfazer legislação, tantas vezes, apenas para deixar uma marca de governo.

É normal aceitar que cada maioria, cada governo, tem legitimidade para aplicar o seu programa, as suas ideias, e assim satisfazer a sua base eleitoral. Porém, numa democracia estável, madura, têm de existir áreas mínimas de entendimento, sem precisar de uma pequena revolução legislativa a todo o tempo.

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O conflito e a divergência são salutares em democracia, mas não é razoável nem sustentável, existir um dissenso sobre tudo, a todo o momento, e sem sopesar os custos ou benefícios de cada solução em particular.

Falamos daquilo que John Rawls designava como consenso por sobreposição, baseado na razão pública, ou Jurgen Habermas, designa como núcleo de deliberação democrática, consensualmente conseguido na esfera pública, espelho duma sociedade pluralista e emancipada. Em suma, deve existir sempre um núcleo de áreas de governo onde a estabilidade legislativa é fulcral.

É certo que os sistemas jurídicos evoluem, procurando acompanhar a realidade que regulam, mas não de forma constante, frequentemente contraditória, como acontece entre nós.

É certo, também, que esse frenesim resulta hoje da palpitante legislação vinda da União Europeia ou de outras organizações internacionais de que Portugal faz parte. Mas, entendamo-nos: vinte e duas alterações à legislação fiscal só em 2015! É obra!

Não há certeza jurídica ou estabilidade para cidadãos ou empresas com esta hiperatividade. Os próprios aplicadores da lei, quer na administração quer nos tribunais, não tem tempo para respirar ou aprender o direito, muito menos para aperfeiçoar as suas interpretações sobre cada tema.

Estaremos, então, de facto, sob a síndrome de Penélope? Será que, entre nós, governar é legislar? Ou devemos, antes, atuar sobre esta nossa faceta, muito sui generis, em que não deixamos consolidar uma solução legal, uma reforma iniciada, para logo apresentar outra, quantas vezes só mudando os nomes ou, noutros casos mais graves, interrompendo um caminho que podia vir a dar frutos a médio e longo prazo?

Não confundir, naturalmente, com o governo das leis (que Aristóteles já distinguia do governo dos homens, tendencialmente arbitrário), raiz do nosso moderno Estado de Direito. Governar em conformidade com a lei é diferente de fazer novas leis por tudo e por nada, quase asfixiando o cidadão. É preciso mudar este comportamento perverso.

Aliás, é frequente a febre de reformar, mudando as leis, ser mais significativa quando há apenas alteração de rostos dentro mesmo governo, do que quando ocorrem mudanças de maioria entre diferentes forças políticas.

Ou seja, quase sempre incapazes de lidar com a gestão de situações complexas de forma racional e desapaixonada, através do rigor, da disciplina e do saber fazer, encontramos nas mudanças da lei a panaceia, o santo graal, para resolver os nossos recidivos problemas estruturais. Perante uma dificuldade, face a uma necessidade de reestruturação ou reforma de qualquer sector público ou mesmo privado, aprova-se uma nova lei.

Ora, esta voracidade legiferante, este ímpeto de mudar a realidade através do diário da república, tem sido um dos maiores entraves à nova efetiva modernização, à nossa competitividade, onde a confiança, a certeza e a estabilidade são fatores essenciais.

Já o saudoso professor Sousa Franco, nas suas Lições de Direito Financeiro e Finanças públicas, concluía que “em Portugal a pior instabilidade é a das leis”. Vem de longe esta apetência de cada governo, cada político, cada dirigente da administração, querer deixar o seu carimbo, o seu traço registado na história do país, do ministério ou do respetivo serviço, por via de um novo diploma legal.

O caminho nunca é tentar decidir melhor, gerir melhor os recursos à disposição, conservando o quadro legal existente, usado as regras do jogo em vigor mas, antes de tudo, mudar essas mesmas regras logo que possível, através de novas normas ou propondo mesmo uma alteração à Constituição.

Saúda-se, assim, a referência, no programa do atual governo, à necessidade de avaliar o impacto de cada reforma legislativa, bem como a redução do número dos conselhos de ministros onde se aprovam novas leis. Alguma experiência, todavia, diz-me que, apesar da intenção e de boa vontade a ela associada, será muito difícil resistir à tentação de mudar a realidade por decreto. Haja esperança e oxalá a minha premonição esteja errada, pois o excesso de alterações legislativas tem sempre um enorme impacto na vida de todos nós.

No fundo, que país aguenta, que economia aguenta, que investidor aguenta, que contribuinte aguenta, que famílias aguentam, a constante alteração dos regimes legais, a frequente incoerência entre modelos educativos, judiciais, fiscais, laborais, de incentivos ao investimento, a necessidade, no fundo, de recomeçar do zero, sempre com custos acrescidos?

Pois bem. É tempo de mudar de paradigma.

Primeiro, é preciso avaliar o impacto de cada reforma levada a cabo. Depois, é fundamental saber melhorar, corrigir, aperfeiçoar o que está mal. Por fim, é essencial saber esperar pelos resultados, ter uma visão de longo prazo e não apenas do efémero, qual modernidade líquida (Zigmunt Bauman), onde tudo é solúvel e imediato.

Afinal de contas, os países com mais estabilidade legislativa, aqueles que mais valor dão ao seu direito e à sua justiça, aqueles que não tentam apresentar-se como vanguarda apenas no papel, são os que melhores índices de desenvolvimento apresentam, contribuindo para o bem-estar dos seus cidadãos.

Assim possamos, finalmente, ultrapassar a síndrome de Penélope!

Professor universitário