O Brexit tem vindo a ser designado como o dia da independência do Reino Unido; a União Europeia (UE) a ser referida como um projecto falhado; e o futuro anunciado como um lugar de Estados-nação (ferozmente?) independentes.

Três afirmações, três suposições, três perigosos erros de visão sobre o caminho que os países europeus, e Portugal com eles, devem trilhar neste perigoso e exaltante início do século XXI.

1. Chamar ao dia da decisão sobre o Brexit dia da independência do Reino Unido é pura demagogia. A mesma demagogia que alimentou, aliás, a campanha do “Leave”, quase completamente baseada no medo aos refugiados e imigrantes. A presença entusiástica de Nigel Farage, grande mentor do Brexit, ao lado de Donald Trump na campanha eleitoral americana, é mais uma prova desse facto.

Quanto à ideia de que o Brexit representa a libertação dos britânicos de uma espécie de ditadura de cinzentos burocratas não-eleitos a emitir normas a partir de Bruxelas, contém pelo menos três equívocos:

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Primeiro – Nem todos os britânicos se revêm na decisão de saída; sendo normal em democracia, há um pequeno senão neste caso, que é o facto do referendo recente na Escócia ter permitido a manutenção do Reino unido apenas porque muitos escoceses quiseram evitar a saída da União, que seria inevitável caso vencesse a secessão.

Segundo – Mesmo que o Brexit se consume, o que não é certo (explico no final), os britânicos (ou a pequena bretanha que restar) terão de negociar com o resto da Europa os termos futuros da relação entre ambos. E, acreditem em mim, a tarefa não será fácil, pois o país será obrigado a aceitar condições onerosas caso queira continuar a aceder ao grande mercado europeu. Isso, é inevitável, implicará aceitar por exemplo a liberdade de circulação de pessoas, como acontece com a Suíça e a Noruega. E deve ainda negociar mais de 50 acordos, comerciais, de associação e outros, com países e grupos de países espalhados pelo Mundo, para substituir os que cessam existência no âmbito da pertença britânica à União, em condições não necessariamente mais favoráveis, pelo contrário. Quando for “independente”, isto é, quando se consumar o Brexit, o Reino Unido terá de continuar a aceitar muito do que lhe for imposto por Bruxelas em matérias que respeitem ao acordo alcançado (e que sejam condição sine qua non para a sua celebração, o que não faltará). E aceitá-las-á, obrigatoriamente, sem ter qualquer voto na decisão. Como independência podia ser melhor.

Terceiro – Os burocratas de Bruxelas, presumo que se refiram aos Comissários, são eleitos num processo próprio à União, tão democrático como a nomeação dos governos nos Estados-membros. Dispenso-me de o explicar por falta de espaço, mas terei gosto em fazê-lo pessoalmente a quem o entenda. Acresce que o processo de decisão europeu é cada vez mais intergovernamental e menos supranacional, pelo que criticá-lo por um lado e, por outro, criticar as instituições supranacionais, é em si mesmo um contrassenso; ou talvez seja um desconhecimento das regras.

2. O segundo erro dos eurofóbicos consiste em considerar a UE um projecto falhado. Não é, nunca o foi e não o será, assim usem os europeus o discernimento grandioso dos pais fundadores; estes entenderam que o futuro dos seus países, num Mundo em mudança e face à globalização, só seria salvaguardado através da união, limitada mas evolutiva, aprofundando-se até ao ponto desejado pelos seus membros; e não, como acusam os eurofóbicos gritando ao lobo (e criticando a caricatura que fazem da União), até ao super-Estado europeu e à concomitante dissolução das soberanias nacionais. Uma união que vá tão longe quanto o necessário sem ultrapassar o aceitável para os povos da Europa, eis a fórmula mágica.

A UE está em crise, é um facto, e pode sair dela com inteligência e perseverança. A receita existe, só depende da vontade dos homens e mulheres do continente, confirmando que “a união faz a força” (“vis unita fortior”), expressão com quase 2500 anos. Terá a União de aperfeiçoar as suas políticas, seja para as aprofundar quando a crítica à falta desse aprofundamento seja justa – caso da política de imigração –, seja para as flexibilizar, quando se justifique e já acontece em tantos casos.

Mas com que direito e bases se critica uma realidade política com 70 anos que garantiu aos povos da Europa 70 anos inéditos de paz? Uma União que transformou países atrasados, como Portugal e muitos dos do Leste da Europa, contribuindo para o seu desenvolvimento, não apenas económico, mas social e cultural, que a crise apesar de tudo não apagou? Uma organização que torna a Europa mais forte e respeitada no Mundo e faz do nosso país, quer queiramos quer não, um parceiro com os mesmos direitos e deveres dos restantes membros da União?

A UE tem dificuldades e ninguém as nega. Mas decretar a sua morte equivaleria a fazê-lo a um doente com febre, tratável com medicamentos, cuidado, carinho. E visão…

3. O terceiro erro é o de imaginar um futuro baseado num sistema de Estados-nação novamente soberanos no sentido clássico do termo: não vou tão longe como Jean Bodin (primeiro a sistematizar o conceito), fico-me pela concepção hegeliana, ponto extremo da definição de Estado (nacional) como dotado de poder absoluto, uma soberania plena, exclusiva e excludente, que não reconhece poder superior na ordem externa nem concorrência na interna. Talvez não seja preciso recordar ao que levou essa concepção da soberania a que agora querem regressar os Le Pen, Farage e Trump deste Mundo, ignorando a evolução dos tempos, a mudança das mentalidades e o devir dos povos: o mais retrógrado e sangrento nacionalismo. Nada mais interessa, aparentemente, do que explorar medos ancestrais, agitar papões convenientes e conquistar o poder nas urnas, para depois (não) cumprir as promessas, por definição incumpríveis.

Não, o futuro não será de soberanias utópicas, mas de uma crescente e inevitável colaboração internacional, em que uniões económicas e políticas colherão na UE, a percursora absoluta, os ensinamentos para a construção de estruturas constitucionais e jurídicas adequadas, no respeito da democracia, dos valores da liberdade, da independência dos seus membros e da vontade dos cidadãos.

Dois post-scriptum: como prometido: o Brexit pode não acontecer se o acordo com a UE se revelar catastrófico para o país e a pressão da opinião pública, ou do Parlamento, leve a uma nova consulta exclusivamente por essa razão. Hipótese remota mas concebível.

Em segundo lugar, discute-se hoje a notícia de que Theresa May, primeira-ministro britânica, pode invocar o artigo 50.º sem consulta prévia ao Parlamento. Seria uma excelente notícia para a União; mas duvido da legalidade de uma tal decisão, por considerar que o Acto de Adesão do país à União, de 1972, deve ser primeiro repelido pelo Parlamento britânico, num voto não vinculado legalmente (estando-o politicamente) ao resultado do referendo.