Neste momento parece-me bastante claro que Mário Centeno enganou o parlamento, quando disse que o seu ministério não negociou com António Domingues as condições de (falta de) transparência necessárias para este assumir a presidência da CGD. Não vou discutir se se tratou de um erro de percepção intencional ou não. Como sempre nestas ocasiões, muitas vozes indignadas se levantaram a exigir a demissão do ministro. Surpreendentemente, são quase todas as mesmas que defenderam a Secretária de Estado Maria Luís, quando esta enganou o parlamento há uns anos a propósito dos swaps. De forma igualmente surpreendente, vemos que os que clamaram pela demissão de Maria Luís Albuquerque são os que agora defendem Mário Centeno.
“Dá-se a mão, querem logo o braço” aplica-se que nem uma luva às elites financeiras portuguesas. Deram a António Domingues um decreto-lei para reescrever. Reescreveu-o com os seus advogados e, mesmo assim, tem os amigos a queixar-se de que o governo faltou ao prometido, como se fosse culpa do governo a incompetência dos advogados que Domingues escolheu. Deram-lhe o decreto-lei da competência do governo, mas precisava também do Estatuto do Gestor Público, da competência da Assembleia da República. Da próxima vez, arranje advogados melhores que lhe digam logo o que precisa. Se me permite uma sugestão, os escritórios de Marques Mendes parecem-me uma boa alternativa.
Apesar de toda a chicana política que tem rodeado a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Caixa Geral de Depósitos, a verdade é que a mesma tem sido muito informativa sobre a promiscuidade entre as elites políticas e financeiras do nosso país. Graças à correspondência trocada entre António Domingues e o Ministério das Finanças, ficámos a saber que, para contratar os melhores gestores bancários, não basta pagar-lhes muito bem. A isenção das regras de transparência é uma condição sine qua non para se ser administrador da Caixa. Mais do que sobre a personagem, esta condição diz muito sobre as elites portuguesas, em particular sobre as elites do sector financeiro. Perante este desejo de falta de transparência, todas as reportagens e livros escritos sobre as fraudes que a banca portuguesa patrocinava ganham uma nova luz.
Voltando ao início, confesso que apesar de toda a gritaria dos partidos, saber se o ministro mentiu ou não mentiu é, de tudo o que se sabe, o que menos me importa. E o que é que se sabe neste momento? Sabe-se que uma lei foi feita à medida do seu principal beneficiário, António Domingues, e sob a supervisão dos seus advogados. Sabe-se também que contratar bons gestores para a banca é incompatível com as mais elementares regras de transparência. Na SIC Notícias, ouvimos ainda António Lobo Xavier, fiscalista insigne da nossa praça e futuro vice-presidente do BPI, considerar que isto tudo “é perfeitamente compreensível e que não é passível de nenhuma censura política”. Para Lobo Xavier, o único erro foi o governo não assumir o que fez, como se tudo isto fosse normal. Mas não é normal, a não ser que se entenda normal no sentido de que ter um cancro é perfeitamente normal. Devastador para a saúde da pessoa, mas normal.
A forma como pessoas como Lobo Xavier falam deste caso e como os partidos da oposição dedicam as suas baterias à mentira e não à lei encomendada mostra que todos têm telhados de vidro e que esta privatização da legislação é comum. Há décadas que se denuncia a forma como o interesse público está capturado por (alguns) interesses privados e as nossas elites não têm vergonha de vir para a televisão dizer que é perfeitamente compreensível que as leis da República sejam redigidas por escritórios de advogados em representação dos seus principais beneficiados. Foi nisto que se tornou a elite portuguesa. Uma oligarquia extractiva que acha que Portugal tudo lhe deve, incluindo leis feitas à medida das suas necessidades.
Chegado a este ponto, que fazer? A demissão de Centeno parecia-me óbvia. Era um favor que lhe faziam, mas, na verdade, nada de essencial mudaria. Tal como nada de essencial teria sido mudado se Maria Luís tivesse sido despedida aquando do escândalo dos swaps. Independentemente da demissão ou não do ministro, Portugal tem um cancro que precisa de ser extirpado. Isso passará por duas coisas.
Há uns dias, na Rádio Renascença, eu perguntava-me se isto de entregar a redacção de um decreto-lei ao principal interessado configurava ou não um crime de corrupção, ou de tráfico de influências acrescento agora. Neste momento, não tenho dúvidas de que não. A prática é tão generalizada que não pode ser crime. Mas devia ser. Assim, a primeira coisa a fazer é alterar o quadro legislativo português criminalizando este tipo de comportamento. Em segundo, e como há uns dias escrevia Nuno Garoupa na sua página do Facebook, precisamos de uma outra Comissão Parlamentar de Inquérito. Precisamos de uma CPI “que faça o levantamento de toda a legislação feita à medida em escritórios de advogados nos últimos dez ou vinte anos. E depois os cinco partidos façam um compromisso solene e público (não é preciso nenhuma lei) de que não voltará a existir outsourcing de legislação sem autorização expressa da AR e sob pena imediata de renúncia da tutela que viole o compromisso.”
Enquanto este compromisso não existir, andaremos a fazer chicana política e a abstenção não cessará de aumentar até que haja um partido populista que faça o que o PRD fez em 1985, depois do segundo resgate patrocinado pelo FMI. À época, com todo o sistema político desgastado, o PRD conseguiu um milhão de votos (18%). Felizmente, a partir daí o crescimento económico real andou acima dos 5,5% de média anual, tendo-se encarregado de reduzir o populismo do PRD a 0,6% nas legislativas de 1991. Hoje, não teríamos essa sorte.