A Cidade do Cabo, uma das mais belas e emblemáticas cidades da África do Sul – senão o seu expoente máximo – está sem água.

O Cabo propriamente dito, esse que passou das Tormentas à Boa Esperança, esse onde o Adamastor foi “dobrado” por Bartolomeu Dias, corre o risco de voltar ao seu antigo nome. Não pelas melhores razões. O homem, os milhões de homens do Cabo, estão acantonados nas proximidades do Cabo, paradoxo dos paradoxos, sem água. Água para consumo humano.

A Cidade do Cabo tem 3,77 milhões de habitantes e é a segunda cidade mais populosa da África do Sul num país com cerca de 56 milhões de habitantes. Pretória é a capital executiva e quinta maior cidade, com cerca de 3 milhões de habitantes. A Cidade do Cabo é a capital legislativa. A primeira cidade em habitantes é Joanesburgo, com 4,5 milhões de habitantes.

O Cabo Ocidental é o Estado da África do Sul que maior crescimento tem apresentado nos últimos anos. Alberga a Cidade (do Cabo) e o Cabo propriamente dito. Trata-se de um verdadeiro hub atractor de migrantes por proporcionar múltiplas oportunidades de emprego. É também um motor económico importante, cheio de novos projetos e gentes empreendedoras. Sectores como a comunicação e a publicidade estão francamente desenvolvidos assim como o cluster tecnológico. Existe inclusive uma Silicon Cape Initiative. Há alguns anos atrás, por exemplo, a Cidade do Cabo foi nomeada a meca mundial do design. Porém, as maiores indústrias são a financeira, de serviços às empresas e de imobiliário.

O gás natural, paralelamente, é um dos recursos mais importantes na região da Cidade do Cabo.

A indústria alimentar é, igualmente, muitíssimo poderosa no estado d’O Cabo Ocidental.

A Cidade do Cabo é um fortíssimo polo de atração turística.

Finalmente, o Cabo Ocidental é um dos maiores e melhores produtores de vinho da África do Sul.

Há, portanto, longos e rasgados elogios a tecer ao Cabo Ocidental e à Cidade do Cabo.

Porém, é neste aparente paraíso africano que a água é escassa. E que tem dia determinado, mais coisa, menos coisa, para ser cortada. Cortada a água canalizada. Será, máximo, até Maio deste ano o corte da famigerada água. Houve quem o tivesse posicionado em Março (o corte), houve quem o tivesse posicionado em Abril (também o corte). O certo é que o dia zero, a manter-se as coisas como estão, está a chegar. E está a chegar depressa.

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Efetivamente, e depois de 3 anos de seca intensa e muito pouco planeamento e preparação, a Cidade do Cabo está prestes a entrar na era dos (apenas) 200 pontos de abastecimento de água espalhados pela cidade. 3,77 milhões de habitantes a abastecerem em 200 pontos espalhados pela cidade. A água canalizada será, assim, cortada.

Fácil, agora, olhar para trás e dizer que uma cidade que cresceu 79% em habitantes desde 1995 deveria ter-se adaptado. Difícil conviver com a realidade de que existe apenas mais 15% de volume em termos de reservatórios para água desde o mesmo ano: 1995.

E por mais que possa custar ler/ouvir isto, o mais importante disto tudo não é tanto a constatação de que se está a ficar sem água. Essa parece uma consequência óbvia das alterações climatéricas e sobretudo uma dimensão a ter em consideração no planeamento e nos investimentos a médio/longo prazo. Certo que se devia ter começado lá atrás, há anos, a pensar em alternativas e em investimentos que pudessem acomodar cenários mais dramáticos.

Evitar que se reguem albufeiras com mangueiras a partir de camiões cisterna, para aparecer na televisão (versão portuguesa do filme!), deve ser uma máxima (vexatória) a evitar. O mais importante é o que fazer agora, hoje, para o futuro a médio/longo prazo.

Duas questões, para já, imediatas: não se pode mais pedir às populações do Cabo para, apenas com bom senso, racionarem o uso da água canalizada. É preciso forçá-las mesmo. Depois, e esta configura a segunda questão, não se pode dar mais que 50 litros de água canalizada por dia e habitante (um duche pode consumir até cerca de 100 litros de água; nos EUA um habitante consome praticamente 600 litros de água por dia, no Brasil 185 litros, na Índia 135, na China 85, no Gana 35 e na Etiópia 15 litros de água por dia).

50 litros de água canalizada darão para um banho (normal), para puxar o autoclismo 5 vezes por dia, para lavar a loiça à mão, para lavar louça em máquina, para uma máquina de lavar roupa, para regar o jardim não muito mais de 10 minutos, para lavar o carro. E não é cumulativo. É mutuamente exclusivo: dando para uma das atividades não dará para mais nenhuma. 50 litros é, portanto, pouco.

A verdade quase inexorável: se não tiverem os 50 litros canalizados (ou seja, se não reduzirem os consumos para 50 litros por dia e pessoa em água canalizada) depressa terão apenas 25 litros por dia e pessoa nos cerca de 200 pontos de distribuição de água na cidade. Filas de espera gigantes estarão asseguradas. A desordem, algum caos – que se procurará controlar – e uma cada vez maior probabilidade de violência poderão eclodir.

Uma das maiores preocupações é assegurar que a economia não colapse. Mas se não chover, se não se cumprirem os 50 litros por habitante de água canalizada…a economia poderá mesmo colapsar.

Primeira alternativa imediata: prevenção para baixar os níveis de consumo. De 1.200 milhões de litros por dia para 540 milhões de litros por dia e, finalmente, uma compressão de novos 25%, podem evitar o dia zero sem água na torneira. Estarão os habitantes conscientes de que é necessário este esforço coletivo? Como se gerem e reportam assimetrias? Como se criam penalizações para evitar especulação e açambarcamento? Raciona-se o período de oferta? Abrem-se e fecham-se válvulas por determinados períodos do dia? Não há respostas simples. Não há soluções, dentro do espectro do racionamento, que sejam simples. Há, porém, mapas de consumo on-line que permitem que os vizinhos se monitorizem uns aos outros e que a sociedade se auto-regule. Alguém tem alguma ideia do que possa surgir a partir daqui?

Segunda alternativa: fechar a água canalizada. E abrir os 200 pontos com direito a 25 litros de água (não canalizada) por dia e pessoa. Para além de caro, caríssimo, cerca de 10 milhões de euros a menos nos cofres da autarquia por se passar de um sistema de água pago para um em que a água terá obrigatoriamente de ser racionada e oferecida, é ainda devastador em termos de impacto económico. Uma cidade nestes “preparos” depressa perderá a credibilidade em termos turísticos e deixará de ser destino para muitos visitantes. O fantasma do que possa daí advir torna-se preocupante porque se trata de uma gestão de emoções e de expetativas. E essa gestão poderá afetar, negativamente, todos os negócios do Cabo Ocidental.

Terceira alternativa: Não existe essa coisa de esperar até 2020 para “suspender” e “reabrir” uma cidade com centrais dessalinizadoras e alguma normalização do abastecimento a um prazo de 2 anos. As centrais de dessalinização em massa há muito que deveriam ter sido previstas.

Esperar por Maio e pelas chuvas pode ser uma solução? Parcial, pelo menos. Mas o ponto de corte será entre Março e Abril. Porém, irá chover em Maio? Tudo isto são equilíbrios demasiado falíveis, demasiado dependentes de efeitos exógenos e de variáveis não geríveis.

Não obstante, tendo em conta o passado e a perda consecutiva de chuva o que espera a cidade do Cabo não é mais que uma grande tormenta. As chuvas podem ser fracas – ou não existir –  e a desertificação completa das bacias hidrográficas e dos reservatórios uma realidade incontornável.

É quase inevitável, em paralelo, que a força policial e o exército entrem em prevenção pois a possibilidade de disrupção de alguma questão nalgum lugar possa passar a ter uma probabilidade de ocorrência crescente.

São Paulo, no Brasil, teve um problema de água em 2015 e as forças policial e militar tiveram de ser usadas para prevenir estragos de grande dimensão. Na África do Sul poderá não ser diferente. Poderá não ser mesmo nada pacífico.

Como acima dizia, e repito, o mais importante disto não é tanto a constatação de que se está a ficar sem água. O mais importante disto é mesmo perceber que com as alterações climatéricas a cidade irá ficar sem água e há que planear e executar o mais rápido possível. Querem-se soluções de futuro, com futuro, e não remendos para sul-africano ver.

Com os degelos e a subida consecutiva dos níveis de água do mar temos, hoje e globalmente, mais água. Mas água salgada. Parece, então, haver uma oportunidade para melhor desenvolver e investigar a dessalinização da água, sobretudo em centrais que não se compadeçam apenas com o retorno ao mar do sal extraído. Uma tormenta que pode tornar-se uma oportunidade. Que deve tornar-se uma oportunidade.

E porque são necessárias ilações para Portugal, em vez de andarmos todos preocupados com o que chove e quando chove (as variáveis que não podemos controlar) que tal começarmos já, agora, ontem, a planear e executar os necessários transvases entre redes municipais e multimunicipais fechadas (evitando os espetáculos tristes dos camiões cisterna a bombarem água para ribeiras a céu aberto) e, porque não, e de Sul para Norte, o planeamento de centrais de dessalinização para colmatar as reservas periclitantes que ainda vamos conseguindo?

A seca e os períodos de seca são cada vez mais intensos pelo que não há como evitar algum planeamento (nos fogos florestais chama-se também prevenção) e alguma previsão do que se pode e deve fazer. E avançar, mesmo, com alguma redundância sistémica. Porque afinal, e como dizem (e hoje bem sabem) os habitantes da Cidade do Cabo, água é vida. Vamos deixar passar outro Verão – embora ainda haja água em Portugal (mal distribuída, mas há água) – sobre o assunto?

Professor Catedrático, NOVA SBE – Nova School of Business and Economics; crespo.carvalho@novasbe.pt