Quando eu era muito pequeno e não me tinha ainda morrido ninguém, o Ano Novo era um lugar mágico, em que tudo era possível e coisas espantosas estavam para acontecer.

Eu era então pequenino e todos os que eu amava, incondicionalmente como se ama ao amanhecer, estariam nos seus lugares para sempre a guiar-me por esse Mundo em embrião.

Claro que eram os meus olhos pequenos a enganar-me, porque o Ano Novo não trazia nada de substancialmente diferente do Ano Velho, eram como dois irmãos siameses, apenas que um estava virado para a frente e o outro era as costas dos dois e estava sempre a fitar o passado. E o da frente dizia: coisas espantosas, e o de trás dizia: coisas belas.

Cresci um pouco no dia em que perguntei à minha mãe se afinal o Pai Natal existia e ela, em vez de me devolver a fé no bondoso ancião dos presentes me disse para falar baixo para o meu irmão mais novo não ouvir e me explicou que não, pois não, afinal o senhor barbudo das renas e do trenó nunca saíra do pólo norte.

Nesse ano, quando o Ano Velho se despediu, senti alguma nostalgia, porque o Ano Novo que ia chegar já não tinha lugar para o Pai Natal e, sem o Pai Natal, a vida perdia um bocadinho de graça, só um bocadinho.

E o irmão siamês virado para a frente dizia, a olhar o Novo Ano: coisas espantosas e o de trás respondia: coisas tristes. Estávamos a crescer.

Quando cheguei à idade do saber, e comecei a questionar o Mundo à minha volta e a dizer, como Jean Gabin, eu sei, eu sei tudo, esperava o Ano Novo com garras para lhe cravar, e tinha a certeza de que tudo ia mudar porque a mudança não dependia de ninguém senão de mim e eu faria do Novo Ano um triunfo e, então, o siamês da frente dizia, olhando o futuro próximo: tantas oportunidades e o de trás, taciturno, resmungava: já se foram, venham novas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E eu ouvia e ria-me, porque eles não sabiam que estava tudo na palma da minha mão, comia as passas por graça e nem sequer esboçava um desejo, nem a sombra de um desejo, o destino estava traçado e era luminoso.

Passaram décadas. A terra rodeou o sol dezenas de vezes e o sol nunca se mexeu. Depois eles começaram a desistir e só o siamês de trás os ainda os via, e dizia: já se foram, já não voltam, e eu chorava, no Ano Velho ficara o meu pai, a minha mãe, um grande amigo, um grande amor, e eu queria lembrá-los mas lá estava o siamês da frente para me impedir, para me lembrar que tudo dependia de mim, como de antes, como sempre e dizia, a olhar nos olhos o Ano Novo: tudo em aberto, e eu queria travar, dizer ao tempo que havia tempo para passar e porque não nos havíamos de contentar em ficar ali mais um bocadinho, com o meu pai, com a minha mãe, com o meu amigo, com o meu amor?

Não, por favor, dizia o tempo delicadamente que o tempo tem essa característica, limita-se a passar com toda a gentileza, não incomoda ninguém, se não lhe dessemos nome nem dávamos pela sua existência, acaba o Ano Velho chega o Ano Novo, passou, e agora vai ser tudo bom, parece mesmo que o Novo Ano é infinito, não vai acabar, nele cabem todas as possibilidades do Mundo, e o tempo não diz nada, deixa falar, vão ver, e quando o ano chega ao fim afinal durou o mesmo do anterior.

O irmão siamês da frente olha então o Ano Novo e exclama: agora é que é, agora é que vai, este ano promete e o irmão siamês de trás, conformado, suspira: esqueçam o ano que passou, passou, não há nele nada de bom. Este Ano é que vai ser.

E em cada ano que passa mais estraleja o fogo de artifício. Mais consumimos. Mais selfies fazemos, mais festas, mais rituais artificiais, mais enfado e ócio e alegria movida a álcool. Trocamos mensagens via whatsapp, via e-mail, via sms, enviamos a todos os nossos amigos, os que já tocámos e os virtuais, longos textos vazios a desejar um bom ano, boas entradas, que em 2018 é que vai ser, agora sim, dinheiro, saúde e amor.

E o siamês da frente olha para trás e pergunta o que fazes aqui e o irmão de trás responde, passando-o, é a minha vez, quero chegar primeiro ao Ano Novo, e batem-se, soçobram, caem na estrada poeirenta onde o tempo parou e choram, para sempre apartados do futuro, condenados à proscrição do lugar onde nada se passa.

Eternos impostores, não são do passado não são do futuro mas do presente, aquele onde eu vivo na minha cabeça, nem para a frente nem para trás mas agora, hoje, no Ano Velho que mesmo sendo Novo é sempre o mesmo; bom ano, sim, o mesmo de ontem, o mesmo de sempre.

Ao desejar bom Ano não prometer. A vida é o tempo que passa e não contempla fronteiras, de calendário ou outras. A vida é só que o fazemos dela, seja qual for o dia.

Não é sério, afinal, um Ano Novo em que se entra a horas diferentes consoante o local do globo onde o aguardemos.

Um excelente Ano Velho.