Todas as manhãs, de segunda a sexta-feira, ainda sob o chuveiro, ouço anúncios palermas a artigos de escritório. “É tão fácil”, comenta uma das personagens-tipo de um expediente chalado: o chefe forreta, a administrativa diligente, ou o colega maljeitoso. Na verdade, é muito mais fácil do que juram. Nunca precisei de tais anúncios para ser levada a essa loja, cuja porta automática é melhor, aliás, não atravessar. Se me vejo nos seus corredores, passo como que por magia a precisar de tudo para que olhe. Como uma criança numa loja de brinquedos, embriagada com o cheiro a plástico, entro num pequeno transe aquisitivo. Um destruidor de papel, uma resma A3 verde claro (senão duas), cinco arquivadores, trinta envelopes almofadados, um pacote de quinhentos elásticos, um transferidor, dois ou três cadernos — nunca foi tão apropriada a expressão “etc. etc. etc.”. Como a de uma pessoa que se prepara para o fim do mundo, a minha paixão por artigos de papelaria encontra para cada um deles a geometria do futuro, transfigurando deliciosamente utilidade em possibilidade.

Ao chegar a casa, no entanto, grande parte do que me parecera útil e imprescindível é, de imediato, tralha de que não me chegarei a servir, como se, coado pela pressa e pela humanidade, um paraíso de eficácia perdurasse apenas enquanto um depósito excêntrico e desfasado de redundâncias e tiros ao lado. O destino daqueles quinhentos elásticos é o de se juntarem no fundo de uma gaveta aos quinhentos que já lá se encontravam, embora não me lembrasse; o dos envelopes, o de almofadarem mais o sonho que a realidade de me corresponder por via postal não sei com quem; o destino de ambos, o de encherem uma casa a cada dia mais parecida com o cabaz de compras de um desmemoriado. É espantoso que o preparar-me para o fim do mundo se assemelhe tanto com preparar-me para o início dos tempos: que não consiga perceber o que virá a ser útil apesar do que levei uma vida a aprender.

O êxtase da papelaria é para outros uma incursão a lojas de bricolage. Outros ainda encontrarão consolo nalgum viveiro de plantas, onde finalmente se acabarão por convencer de que precisam de uma oliveira para a varanda. Regressados das compras, a função auspiciosa dos materiais, das ferramentas ou dos espécimes botânicos adquiridos será engolida pela casa e pela vida. Naquela que, há uma hora, na loja, nos parecera a caixa de plástico óptima para certo propósito, não cabem, afinal, tantos slides. As pastas de arquivo suspenso não são à medida do arquivador; e afinal não temos a chave certa para os parafusos ideais. Hão-de servir alguma vez — ou não; e as casas vão-se atafulhando de coisas que nos entreteremos a esquecer ou a estragar. Na estação em que, julgando-a irrecuperavelmente bichada, a oliveira da varanda responder a uma mudança de vaso, a sua indispensabilidade andará para lá de esquecida. Poderá então revelar-nos o pouco que podíamos calcular sobre o que nos salvaria o feriado.

Caso nos voltem a surpreender, os objectos que nos pareceram um dia a solução para problemas em que nunca tínhamos pensado tornaram-se nesse momento parte de quem somos. Aqueles a que nunca chegaremos a recorrer dão de nós a imagem de uma criança em tonturas num grande jogo de cabra-cega em que vamos sendo empurrados por passado, presente e futuro. Muitas coisas se parecem nas nossas vidas com a oliveira caprichosa que, após meses de descuido e ventanias, se passou a dar unicamente na nossa varanda. Medram apesar de nós — dos sonhos e maus-tratos a que as votámos e de onde saíram, quando deles já não se distinguirem. Como um reflexo milagroso, só nos apercebemos delas quando afeitas à forma desastrada como orquestramos a vida. O seu regresso é, com frequência, uma devolução: não a lista de compras que nos esquecêramos de levar, mas um arquivo do presente em que nos parecemos guiar de olhos fechados.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de “Esse Cabelo” (Teorema, 2015).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR