Pelo que se lê nos jornais e se vê nas televisões, um novo espectro ronda a Europa: o espectro do turismo. E as classes ameaçadas, de Veneza a Barcelona e a Lisboa, e se calhar ao Porto, ignorantes da necessidade férrea que preside a esta manifestação do sentido da história, desenvolveram uma reacção à medida, dando lugar a uma nova expressão: “turismofobia”. Talvez por sair pouco de casa e ter uma concepção grosseiramente materialista da existência, não percebo bem, a não ser de modo puramente intelectual, estas reacções a algo que, segundo todas as aparências, promete benefícios económicos a quem bem precisa deles. Dir-se-á que a vida não se reduz a isso e que há coisas que não têm preço. Inteiramente de acordo. Mas quando os media dão a impressão de uma unanimidade na defesa de valores insubordináveis a qualquer apetência de lucro, palpita-me que essa unanimidade, uma espécie de populismo chique, é fictícia. Mas talvez ela exista mesmo e eu precise de rever do princípio ao fim a minha concepção das paixões humanas na época histórica actual.

Uma coisa, é verdade, não se discute. As pessoas tendem por vezes a atrapalhar-se umas às outras, suscitando raivas e raivazinhas recíprocas, quando não ódios mortais que atravessam gerações. Basta pensar nas lendárias querelas, que os westerns celebrizaram, entre criadores de gado e agricultores. Ou, mais à mão de cada um de nós, os conflitos entre vizinhos.

Apresso-me a dizer que sempre tive excelentes relações, ou estupendas não-relações, com os meus vizinhos. E tive muitos vizinhos, em consequência de uma longa experiência de mudanças de casa, em Portugal e nalgumas outras paragens deste mundo, uma experiência à qual, de resto, espero ter posto termo. Mesmo um nativo da Córsega que, em Paris, decidiu criar legiões de baratas no apartamento ao lado do meu, provocando uma inominável catástrofe que se alargou ao prédio inteiro, não me suscitou qualquer altercação. Mas tem de haver sempre uma primeira vez para tudo, como diz a sabedoria humana. Permito-me contar a minha história desta iniciação, não evidentemente por ela conter qualquer valor intrínseco, mas porque me permite passar para uma lição mais geral que talvez seja de alguma utilidade.

A minha vizinha de cima adquiriu recentemente um cão. Nada tenho contra cães e gatos, antes pelo contrário. Acontece no entanto que o cão dorme no quarto exactamente em cima do meu. No mês de Junho, eu e a minha mulher acordámos várias noites com o desagradável barulho das movimentações do cão, as unhas no soalho de madeira, perturbando o confortável silêncio da noite. Kafka dizia que a impaciência é o pecado capital, e eu, talvez por ingenuidade ou razão pior, gosto de seguir os preceitos dos grandes espíritos. Por isso, deixei passar algum tempo antes de comunicar à instância devida as minhas inquietações. Mas, quando percebi que a situação ameaçava tornar-se a regra e não a excepção, lá fui pacatamente explicar ao andar de cima os nossos sofrimentos, delicadamente pedindo se o cão podia dormir noutro sítio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As últimas noites do mês foram de silêncio e em Julho partimos de férias. Chegou Agosto. Tristemente, com a morte na alma, eu e a minha mulher constatámos que o retorno às movimentações nocturnas se havia verificado. Fazendo minha de novo a sabedoria de Kafka esperei alguns dias, até que me decidi a subir as escadas. Mal a porta se entreabriu, fazendo aparecer a vizinha e o cão, exorbitei de delicadeza comecei respeitosamente o diálogo: “Peço imensa desculpa de a incomodar de novo, mas voltava a pedir-lhe que o cão, se possível, dormisse noutro sítio.” Ainda não tinha praticamente acabado a frase quando a maior berraria que jamais me foi dirigida teve lugar, acusando-me (em termos diferentes) de total falta de respeito pela sagrada intimidade do lar e de outros pecados sortidos. Não respondi nada de memorável. Não sei, de resto, se é possível proferir frases memoráveis no meio de gritarias. Mal virei as costas, a porta bateu com grande estrondo. Sinal de muita energia, de resto. Nunca pensei que uma porta apenas entreaberta pudesse ser fechada com tanto significado sonoro.

Conto esta história apenas porque ela me parece revelar, para além dos detalhes da aparência, uma atitude muito geral. Nas palavras de um meu antigo sapateiro formado em direito pela leitura do jornal “A Bola”, a minha vizinha, como o guarda-redes do qual ele falava, encontrava-se na sua “área de jurisdição”. E na sua área de jurisdição mandava ela. Como os turistofóbicos, havia ali valores inegociáveis. A família é o coração oposto ao mundo e a casa um lugar não poroso sobre o qual se tem inteira soberania. Se isso lixa os outros, tanto pior.

Não é preciso muita imaginação para ver nisto um comportamento recorrente e com consequências infinitamente mais danosas do que as da minha pequena querela canina, que é, à superfície e na essência, insignificante. Apenas um exemplo que observei recentemente. Havia numa rua do Porto de que eu gosto muito um restaurante italiano onde almoçava com alguma regularidade. Tinha uma esplanada simpática e não se comia mal. O spaghetti alla amatriciana era mesmo bom. Eis senão quando a Câmara resolveu fazer obras de canalização e a rua ficou literalmente infrequentável por causa do solo esburacado, do barulho das máquinas, da poeira por todo o lado, etc. E a coisa não durou um mês ou dois: durou muitos meses, uma eternidade. A proprietária queixava-se de como os clientes iam desaparecendo a olhos vistos, facto que eu, quase o último dos moicanos, testemunhava perfeitamente. Os custos económicos foram tais que ela teve de fechar o restaurante. Podia-se protestar contra os serviços da Câmara? Provavelmente podia-se. Mas que adiantaria isso? Eles estavam dentro da sua área de jurisdição.

A quantidade de áreas de jurisdição que nos lixam a vida é enorme e os exemplos de prepotência que inspiram são inúmeros. Elas são a melhor base a partir da qual a falta de respeito pelos outros se pode organizar em sistema. Até porque servem de barreira, burocrática ou outra, contra os mecanismos de adaptação dialogada que permitem um convívio relativamente pacato entre as pessoas e as comunidades. Toda a gente fala de “reforma do Estado”, algo que desde há muito me parece no essencial um projecto utópico. Não seria antes altura de pensar as áreas de jurisdição de modo menos estanque e mais dialogado? Não ficaríamos a ganhar todos? Não seria a nossa vida mais civilizada?