Porquê? Porque um náufrago, perante a antevisão e quase certeza da sua morte, não desperdiça os seus pensamentos com questões menores. Não fica a eternizar o último desentendimento com o chefe, nem a perpetuar o conflito que tem com os vizinhos. Não gasta um único segundo a trazer à memória os braços de ferro que manteve com os irmãos, nem se importa com aquilo que um amigo fez ou disse num momento menos feliz. Tão pouco se detém a pensar em superficialidades ou gasta o seu derradeiro tempo e fôlego a tentar satisfazer últimos caprichos. Quando a morte está tão presente para alguém como um náufrago, as ideias, os pensamentos que se impõem e atravessam o espírito são de outra ordem. E grandeza.

Ortega Y Gasset, filósofo e ensaísta espanhol que morreu em 1955, com 72 anos, tem sido amplamente estudado e é incontáveis vezes citado dentro e fora da Academia. Embora não seja uma estudiosa de Gasset, também eu me identifico com muitas das suas reflexões sobre a relação entre a vida e as circunstâncias de cada um, mas se hoje o cito é para partir da sua lendária frase sobre ‘as ideias do náufrago’. E faço-o depois de ter ido ouvir uma conferência do filósofo brasileiro contemporâneo Tiago Amorim, esse sim um aficionado dos grandes Mestres e Filósofos espanhóis. Tiago Amorim falava sobre Vocações perante uma jovem plateia de estudantes portugueses, partindo de uma pergunta provocatória e primordial: “quem iremos ser antes de morrer?”. Note-se que a questão se põe a cada um conjugando também o verbo ‘querer’. Ou seja, quem queremos ser antes de morrer?

O propósito de Tiago Amorim, autor de vários ensaios de Filosofia, mas também terapeuta e professor de Cursos sobre a Vida Humana, era despertar a consciência das centenas de adolescentes ali presentes para a importância de desenharem um ‘mapa do mundo pessoal’, uma cartografia de dons e talentos próprios que os ajudem a traçar o rumo das suas vidas e a percorrer os caminhos da realização pessoal e profissional. “A vida sem projectos e sem sonhos, não é vida humana. Uma das características da depressão é não ter projectos nem sonhos. Vivemos no inferno existencial sempre que vivemos abaixo de nós mesmos e das nossas capacidades”. Todo este enunciado exigiria muito mais do que três simples parágrafos para desdobrar o lençol de interrogações que se estendeu imediatamente sobre aquelas centenas de jovens, para quem as múltiplas opções e orientações que conduzem a uma vida satisfatória não são nada óbvias. Mas não é disso que trata esta minha crónica. A minha âncora hoje é a certeza de que perante a eminência da minha própria morte (e todos sabemos que esta é a única estatística 100% fiável!) as minhas ideias seriam radicalmente diferentes daquelas que neste momento povoam o meu pensamento e atravessam o meu coração. E isso interpela-me, porque me faz agir, porque me dá ‘mola’ interior e me ajuda a pôr muita coisa em perspectiva. E obriga-me realmente a dar mais valor àquilo que verdadeiramente importa, para não me acontecer chegar o momento do meu naufrágio e eu sem uma resposta à altura da pergunta inaugural.

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