Nos dias estranhos que correm em Portugal, a (ainda) projetada “união da esquerda” reage com violência ao discurso do Presidente da República, socorrendo-se, ao que parece, de três armas retóricas que se encontram entre si numa relação de frontal contradição, considerando a versão que lhes é dada: o respeito pelas formas constitucionais, o respeito pela Assembleia da República e a cultura de compromisso democrático.

Na versão mais leve, o Presidente é acusado de gerar uma “perda de tempo”. Nas versões mais extremadas, de gerar uma “crise política gratuita” ou de “golpismo” contra as formas constitucionais próprias de uma “democracia parlamentar”. Tal por anunciar desde já que não carimbará uma projetada, e por ora patentemente inconsistente, solução governativa “de esquerda”. Assim como se as formas não tivessem, ou não devessem ter, qualquer substrato material, traduzido no respeito por linhas programáticas apresentadas ao eleitorado e na mínima consistência quanto à articulação entre elas. E assim como se um Presidente com legitimidade democrática direta não pudesse garantir esse substrato material contra a sua patente subversão.

Curiosamente, aqueles que afirmam estar o Presidente a gerar uma “perda de tempo” ou a criar uma crise política inútil, fazem-no cientes do facto de o Presidente não poder, neste período, dissolver a Assembleia da República e assim devolver a palavra ao povo. Ou seja, socorrem-se de uma situação de anormalidade para garantir que a sua nova normalidade é erigida em regime.

Mas o mais bizarro neste ataque ao Presidente é a verdadeira convulsão perante o seu suposto “apelo” a uma “rebelião” de deputados nas hostes das “esquerdas”. Pois, na verdade, a firme rejeição desse suposto “apelo” significa, essa sim, uma recusa clara do formalismo constitucional e do papel dos deputados na Assembleia da República – os mesmos que as esquerdas proclamam defender.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É que, face à Constituição, o mandato dos deputados é inequivocamente livre. E se assim é, é a projetada “união de esquerda” que, ao opor ao Presidente – e ao artigo 155.º da Constituição – uma estrita disciplina partidária, parece propor uma subversão das formas constitucionais em nome de estatutos partidários e da prática traduzida em segui-los. Ora, pelo lado do Presidente, se este invocou práticas constitucionais, invocou aquelas que, ao longo de 40 anos, complementaram o texto constitucional e permitiram a convivência democrática.

Por fim, a (ainda) projetada “união da esquerda” opõe, pasme-se, ao Presidente a cultura de compromisso própria de uma “democracia parlamentar”. Esta é, de todas, a acusação mais surpreendente pois provém daqueles que, nas duas últimas semanas, converteram sedes partidárias em castelos de Canossa.

O castelo de Canossa, no norte de Itália, foi palco de um dos mais dramáticos – e traumáticos – acontecimentos políticos ocidentais. Às suas portas, o imperador Henrique IV, depois de excomungado pelo Papa Gregório VII, em virtude de desafiar a suserania papal, esperou de joelhos três dias e três noites sujeito às piores intempéries. Depois de observada a humilhação, e bem atestada a deslegitimação da causa imperial, Sua Santidade concedeu ao imperador entrada no castelo e levantou a excomunhão.

Não conheço quem, entre historiadores e demais estudiosos, chame a este estado de coisas um “compromisso político”. Pelo contrário: a humilhação de Canossa ficou registada nos anais como o exato oposto, a vitória em toda a linha de uma das forças e a integral deslegitimação da outra. Curiosamente, no entanto, nos estranhos dias que decorrem em Portugal é a noção de “compromisso” do Papa Gregório VII que preside ao discurso da (ainda) projetada “união das esquerdas”.

Na verdade, um partido que perdeu as eleições, mas invocando as regras (formais) de um sistema de pendor parlamentar (com exceção de uma, das mais importantes), almeja ostensivamente que aquele que as ganhou renuncie totalmente ao seu programa político. Sem isso não há “compromisso”. Tudo o que fique aquém disso – porventura de um ajoelhar prolongado dos vencedores das eleições no largo do Rato em dias de tempestade, rasgando o seu programa, garantindo uma “mudança de política” e celebrando um “virar da página da austeridade” – é encarado como um “vazio total”. E decerto que os ungidores não se satisfazem com “bolas de Natal”, por muito que elas contorçam já a causa dos excomungados.

A risibilidade do exercício é bem evidente. Atesta-se, à vista desarmada, no facto de delegações papais terem corrido para outras Canossas – que estranhamente terão feito suas – com vista a garantirem o respeito pelos mesmíssimos princípios que movem aqueles cuja genuflexão exigem.

Uma farsa, portanto. Mas se o riso se torna irresistível nas circunstâncias, os resultados amargos estão à vista de todos. Afinal, em Portugal, não pode haver compromissos da estirpe daqueles que ocorrem nos “Borgens” do norte da Europa – os mesmos que o Presidente teve sempre em mente. É que aí, tudo parte da defesa desempoeirada de programas próprios que se procuram ajustar sem que ninguém perca a face e o país, afinal, ganhe. Nada que ver com Gregórios.