A cunha é uma forma de corrupção, tráfico de influências e um crime segundo qualquer estado de direito. Mas acima de tudo é a mais alta instância de humilhação ou arrogância — quer se trate de uma súplica por um emprego ou uma exigência de quem acha que o filho ou afilhado tem direito a certo cargo. Seja como for, a cunha está profundamente enraizada na sociedade portuguesa e parece que para tudo é preciso a “santa cunhazinha” ou a “palmadinha nas costas,” seja para ter sucesso em tal carreira ou para coisas mais básicas, como ter saúde. E aqui recordo-me de uma entrevista de um dos maiores escritores portugueses que dizia que “o meu amigo médico desvobriu o meu cancro num dia e no dia seguinte eu estava na sala de operações e tenho a perfeita consciência que isso me salvou a vida” – quando li isto refleti se só eu estaria a ver como era profundamente errado aquilo? Com o passar do tempo, descobri que só eu pensava assim e o resto do mundo estava “certo”, mas mesmo assim sempre me reservei o direito de fazer como o poeta José Régio e “não ir por aí.”

Quando era jovem sempre tive o sonho de trabalhar num jornal e foi esse um dos primeiros trabalhos a que concorri quando me licenciei. Lembro-me de há muito, muito tempo, estar numa sala com outros candidatos a fazer uma prova escrita interna e a esforçar-me genuinamente, enquanto o resto estava a debater em que jornal deveria ficar, uma o irmão tinha dado a hipótese das três maiores publicações portuguesas, outro que já tinha arranjado um favor noutro sítio e por aí adiante. Claro que não fiquei nesse trabalho, mas situações como esta encontrei vezes demais na minha vida. Tanto no setor público como no privado. E isto diz muito sobre o grau de desenvolvimento de Portugal e a mentalidade tacanha, profundamente terceiro-mundista que pulula na sociedade.

Também houve uma altura em que as pessoas me pediam cunhas e sempre tive a “infeliz” ideia de ficar surpreendido e perguntar, “como, quem, porquê, com que direito?.” Uma das primeiras vezes marcou-me e foi logo na universidade. Era uma pessoa que eu sabia. que não gostava de mim e até falava mal nas costas, mas um dia veio ter comigo como se nada fosse, com demasiada simpatia e como uma oração a uma divindade. Não só me incomodou, como me entristeceu e me fez ter muita pena. Mas foi o primeiro ensinamento de que vivemos num mundo cruel onde o povo não se pode dar ao luxo de olhar a meios para chegar ao objetivo final. Talvez porque haja demasiada pressão para se obter resultados e ser bem sucedido — seja lá o que isso for.

Portanto, quem escolhe ser um idealista terá um caminho solitário no resto da vida e não o aconselho a ninguém: é duro e não haverá palmas à partida ou à chegada, pelo contrário. E mesmo as pessoas que eu julgava terem os mais altos valores morais, achavam que a cunha é uma exceção, um sinal de companheirismo ou lealdade. Não, não é — e de nada vale as pessoas racionalizarem desta forma, há uma clara distinção entre certo e errado, sendo que o errado é crime. Ponto final. Também descobri que a reputação “nunca dou cunhas” quer quase sempre dizer que “só dou cunhas a quem me for realmente útil.”

É este o país em que vivemos e confesso que esta característica me enoja e causa a maior repulsa. Numa economia onde o departamento de recursos humanos é para lavagem de cunhas, excepto em cargos altamente especializados ou em mão-de-obra intensiva. De resto, ainda funciona tudo à base da oferta de bacalhau ou outras coisas inimagináveis. Mas a cunha é apenas a ponta do icebergue, onde os maus hábitos, as falhas nos procedimentos e a inexistência de valores empresariais ou instituicionais são mais poderosos que o empreendedorismo, a inovação e o trabalho bem feito.

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