Graças à óptima invenção do conceito de “férias”, uma pessoa pode, levando a ideia a sério, mesmo com os necessários compromissos com o mundo exterior, encontrar algum repouso e imaginar-se dentro daqueles maravilhosos quadros pintados na segunda metade do século XIX pelo magnífico Eugène Boudin, com as praias da Normandia vivas com pouca gente e o cheiro do mar misturado com uma luz que dá às figuras humanas uma aparência imprecisa e ao mesmo tempo dotada de uma espécie de sobre-realidade, da realidade como ela devia ser. A Foz do Neiva não é certamente Trouville e não se corre o risco de ver ao longe a Imperatriz Eugénia e as suas acompanhantes, mas tem em alguns dias algo que faz lembrar isso e tem, para mais, um rio e campos cheios de passarada que oferecem, em certas tardes, uma manifestação sensível da imobilidade, a experiência de um mundo em que, para nossa grande surpresa, o silêncio traz consigo o sentimento de uma aparência destituída de sucessão em que nada se altera.

Com a ajuda de certos artifícios, como o de usar a televisão apenas para ver a Volta à França, a distância para com o que se chama “actualidade” aumenta imenso. E Deus sabe como isso sabe bem e é necessário. Mas as palavras continuam a chegar de fora, de qualquer maneira, e falam de um mundo ao qual, mais cedo ou mais tarde, temos de voltar.

Em primeiro lugar, o mundo das intenções políticas e das suas interpretações. Por exemplo, o que terá levado António Costa, o presente grande símbolo da nossa caseira “actualidade”, a declarar por várias vezes a sua radical detestação da Altice e da compra por esta da TVI? Medo de perder a possibilidade de manipular um canal televisivo? Desejo de pactuar com os partidos que apoiam o Governo e que representam o arcaísmo político mais extremo que a sociedade portuguesa, no momento presente, permite? (Nunca devemos deixar de nos surpreender, com legítimo medo, com o facto de alguém como Catarina Martins, mais ainda do que Jerónimo de Sousa, ser um activo e muito falante suporte da nossa governação, porque se encontra aí um sinal indubitável de várias trapalhadas presentes e futuras.)

Ou ainda a aparente recusa, por parte do Governo, da participação portuguesa nas sanções ao ditador Nicolás Maduro da Venezuela, em contraste com as declaradas intenções de todos os restantes governos da União Europeia. Receio de ruptura com o PCP, que morre de amores por aquele regime, como, fiel aos seus princípios, morre de amores por todas as ditaduras que pertençam ao que ele chama “esquerda”? Simpatia natural por Maduro? Outra coisa qualquer? De qualquer maneira, armou-se mais uma confusão. O Ministério dos Negócios Estrangeiros declarou que a questão, contrariamente ao que o El País noticiara, nem sequer havia sido discutida pelos representantes da União Europeia. Azar. Federica Mogherini, a chefe da diplomacia europeia, afirmou exactamente o contrário. Último exemplo. A “lei da rolha” imposta pela Protecção Civil, com o entusiástico apoio de Costa, que proíbe aos comandantes distritais dos bombeiros prestarem à comunicação social informações sobre os fogos que varrem o país. Vontade de usar o poder para controlar tudo o que possa significar ameaça à sua imagem?

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Todas essas coisas apontam para um autoritarismo efectivo. Um autoritarismo que se desdobra naturalmente numa desconfiança de base relativamente a tudo o que cheire a iniciativa privada independente que contribua para a riqueza do país, como se pôde ver na recusa do Bloco e do PCP em aprovarem o voto de pesar pela morte de Américo Amorim na Assembleia da República. É verdade que o PS o aprovou, e é verdade também que ninguém estaria à espera que o Bloco e o PCP, dada a sua concepção da sociedade, o fizessem. O problema é que o Governo depende do apoio parlamentar do PCP e do Bloco. E pensar que a atitude dos apoiantes do Governo não o contamina é de uma ingenuidade que roça a idiotia. É claro que o contamina, não pode deixar de o contaminar. Há comunidade de pensamento, diga-se o que se disser, ali. E essa comunidade de pensamento exprime uma concepção autoritária da sociedade que vai contra uma concepção liberal que deveria ser partilhada pela esquerda e pela direita. O autoritarismo do pensamento político que nos governa é mesmo algo que se deve levar a sério. Não é um produto da imaginação: é um facto real.

Há, além disso, outras palavras que dizem muito, e que são palavras sobre palavras. Os dois últimos casos foram as reacções às declarações do médico Francisco Gentil Martins sobre a homossexualidade e a metodologia procriativa do futebolista Cristiano Ronaldo e as palavras de André Ventura, o candidato do PSD e do CDS à Câmara Municipal de Loures, relativas à relação dos ciganos com o Estado português. Não há singularidade portuguesa alguma nem nas declarações nem nas reacções: acontece praticamente em todo o lado. Mas declarações e reacções merecem alguma reflexão.

Em primeiro lugar, é necessário notar que os casos são diferentes um do outro. Gentil Martins, alguém que patentemente não é dotado de qualquer influência sobre o curso do mundo, fez declarações disparatadas sobre a homossexualidade e pronunciou-se com uma agressividade que foge aos bons costumes no que eles têm de bom (“estupor moral”) sobre o futebolista. Em ambos os propósitos, embora por razões diferentes, tornou-se digno merecedor de coça opinativa. André Ventura, de quem nunca tinha ouvido falar, não emitiu, que eu tenha percebido, juízos morais relativos aos ciganos. O seu caso é diferente do de Gentil Martins. Discutiu um facto, que não faço a mínima ideia se é verdadeiro ou falso. A atribuição de uma intenção moral e politicamente condenável, discriminatória, ao que ele disse é matéria de interpretação: não estamos no registo do óbvio.

É claro que há várias maneiras de dizer aquilo que, sensata ou insensatamente, se pensa. Mesmo no registo oral. E que o cuidado com isso é um dever político. E salta aos olhos que Gentil Martins não teve a sombra de tal cuidado. Admito, por hipótese, que André Ventura também não o tenha tido. E o “politicamente incorrecto” gratuito parece-me, no mínimo, uma puerilidade que gente crescida, por mil e mais uma razões, deve evitar. Mas o que, sem surpresa pessoal, me preocupa mais são mesmo as reacções. Não a condenação em si, deve-se sublinhar, mas a sua forma: a da vontade da criminalização. Diferentemente da rejeição, mesmo veemente, dos propósitos, algo de perfeitamente salutar, o apelo à criminalização releva de um desejo autoritário muito mais nocivo do que as palavras repudiadas.

Isto e a preocupante atitude geral do Governo para com a sociedade produz uma legítima inquietação. A sociedade portuguesa anda mal e não é de facto abusivo interpretar todos estes sinais como algo de ameaçador. Certamente que caminhamos para longe de uma concepção liberal da sociedade que esquerda e direita, cada uma abdicando de partes pouco recomendáveis das suas respectivas tradições, deviam partilhar. Até onde é que esse caminho nos pode levar é uma pergunta séria. E algum pessimismo deve ser exprimido.

E agora, o mais depressa possível, que o dia está excelente, para a praia. Caminho pelas margens do Neiva, observação com binóculos da passarada e dos saltos das tainhas, e, no fim, escolha do lugar ideal da praia na maré vaza. Um dia de sol e mergulhos. Pelo prazer da coisa e para aguentar o ano que vem com esta gente.